Trabalho análogo à escravidão bate recorde e liga alerta 134 anos após a abolição

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Número de resgates de resgatados em situação de trabalho análogo à escravidão bate recorde de 15 anos no primeiro trimestre de 2023Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Marcelo Bertoldo marcelo.bertoldo@odia.com.br Publicado 26/03/2023 05:00

Na contramão da história, o aumento de denúncias de exploração de mão de obra análoga à escravidão ecoa um passado que ainda se faz presente no Brasil. Entre janeiro e março deste ano, auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego resgataram 918 trabalhadores em situação semelhante à de escravos, um aumento de 124% em comparação ao primeiro trimestre de 2022. Um recorde, abominável, em 15 anos.

“Há necessidade de maior articulação entre os órgãos envolvidos no combate ao trabalho escravo: MTE, PF, MPT, MPF, Judiciário Trabalhista e Federal… A defasagem no número de auditores fiscais do trabalho atrapalha, pois quanto menor o efetivo, menos ações fiscais para apurar as situações de escravidão ocorrerão”, salienta Guadalupe Louro Turos Couto, procuradora do Trabalho e representante da Coordenadoria Nacional de Erradicação ao Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado do Rio de Janeiro.

Os dados levantados pelo G1 indicam uma escalada da prática criminosa. Em fevereiro, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) resgatou 207 trabalhadores baianos em situação análoga à escravidão na colheita de uvas em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Após a fuga de três trabalhadores da vinícola, a PRF confirmou as denúncias de atraso de salário, tortura, carga horária abusiva, fornecimento de alimentos estragados e proibição para deixar o local.

“O resgate não envolve só a retirada do local de exploração, mas também o trabalho conjunto para o respeito de direitos básicos, como o pagamento das verbas rescisórias, a emissão de guia de seguro-desemprego, possibilidade de volta ao local de origem, com o auxílio de centros de assistência social”, destaca Izabela Borges, advogada do escritório Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados.

A sucessão de casos e de denúncias tem se concentrado nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país, geralmente ligados às atividades agrícolas, como revelou o resgate, na semana passada, de 365 trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão em lavouras e usinas de cana-de-açúcar no interior de Goiás. A maioria veio do Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) realiza ações preventivas, repressivas e de atendimento às vítimas pós-resgate de pessoas em situação análogas à de escravo. Guadalupe detalha as ações do MPT, além das obrigações trabalhistas, previdenciárias e indenização, a título de dano moral, aos trabalhadores escravizados. É o caso do Projeto Ação Integrada – Resgatando Cidadania, o qual ela gerencia.

“O objetivo é romper com o ciclo do trabalho escravo contemporâneo e, para tanto, acompanhamento psicossocial dos resgatados, custeio de hotel assim que retirados do local onde houve a exploração, até a vítima voltar a sua cidade de origem ou ser inserida em abrigo público, além do custeio de cursos profissionalizantes para que esses trabalhadores recuperem a sua dignidade e sejam reinseridos no mercado”, destaca a procuradora.

O mutirão conta com a participação da Defensoria Pública da União, da Polícia Federal e dos Ministérios Públicos Federal e do Trabalho. E qualquer cidadão pode denunciar a exploração de trabalho escravo, de forma remota e sigilosa, pelo Sistema Ipê por meio do link https://ipe.sit.trabalho.gov.br/#!/, assim como no site do MPT (www.mpt.mp.br), de forma identificada, sigilosa ou até anônima e por meio do Disque 100.

No entanto, o número limitado de auditores fiscais do MPT para cobrir o território nacional é um dos problemas do combate ao trabalho escravo no país, como destaca Daniella Tavares, CEO do Daniella Tavares Advocacia e Consultoria Empresarial.

“Além das dificuldade enfrentadas pelo déficit evidente dos auditores fiscais, a falta de conhecimento da população quanto à ‘escravidão moderna’ dificulta a fiscalização por parte do Estado, uma vez que as denúncias ocorrem pela constatação de um ou mais cidadão da prática criminal. A sociedade deve estar vigilante, para que assim, denúncias sejam realizada e crimes interrompidos”, avalia a advogada.

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, defende a divulgação da chamada “lista suja” de empregadores flagrados na exploração de mão de obra escrava. O ministro ainda considera que a polêmica reforma trabalhista sancionada no governo de Michel Temer (MDB) ampliou a terceirização como mecanismo para a sonegação de direitos, barateamento e, consequentemente, precarização da relação do trabalho.

“Aqueles que forem flagrados fazendo uso de mão de obra análoga à de escravo serão devidamente responsabilizados. As empresas que terceirizam são responsáveis e terão de assumir e pagar pelo erro. A empresa mãe é responsável”, disse Marinho.

Último país do continente americano a abolir a escravidão da população negra, há 134 anos, o Brasil vê o perigoso movimento de um grupo de deputados federais favoráveis à extinção do Ministério Público do Trabalho e de cortes trabalhistas. Trineto da princesa Isabel, que, em 13 de maio de 1888, assinou a Lei Áurea, documento que aboliu a escravidão de cerca de 700 mil pessoas no Brasil, Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) tem liderado o debate na Câmara.

O deputado federal, que se autointitula príncipe, tem articulado colegas para aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que extingue o MPT, além de todas as cortes de Justiça Trabalhistas, como as varas do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Em meio ao crescimento de denúncias e casos de trabalho análogo à escravidão no país, o descendente dos imperadores do Brasil Pedro I e Pedro II pretende acabar com fiscalização, que, consequentemente, dificultaria a punição à exploração ilegal da mão de obra. Até o momento, o parlamentar teria colhido 66 das 171 assinaturas necessária para a tramitação do projeto na Câmara. Posteriormente, a possível aprovação exigiria o mínimo de 308 votos.

“Retrocesso. É evidente que, apesar das leis trabalhistas vigentes e todo o trabalho de fiscalização (judicial e extrajudicial), as relações entre patrões e empregados são desequilibradas. É primordial a existência de um órgão do poder Executivo que defina políticas sobre a providência, geração de emprego e renda e sobretudo a fiscalização do trabalho, política salarial e segurança no trabalho”, avalia Daniella Tavares, em conformidade com a procuradora do Trabalho Guadalupe Louro Turos Couto.

“No meu entender, a PEC é mais uma tentativa de enfraquecer a política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo. A erradicação constitui uma prioridade do Estado brasileiro que, tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1ª da Constituição da República de 1988)… A PEC representa mais uma tentativa de afrontar os fundamentos do Estado Democrático de Direito, os objetivos da República Federativa do Brasil e direitos fundamentais de todos os trabalhadores”, conclui.

Número de trabalhadores resgatados no governo de Jair Bolsonaro:

– 2019: 1.131

– 2020: 938

– 2021: 1.959

– 2022: 2.575

O que é trabalho análogo à escravidão?

A legislação brasileira classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada. Na prática, quando o funcionário é impedido de deixar seu local de trabalho e desenvolve atividades sob condições degradantes ou em jornadas exaustivas. É passível de denúncia qualquer caso em que o trabalhador seja vigiado constantemente, de forma ostensiva e intimidadora, pelo patrão.

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