A floresta profunda e as crianças resgatadas

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O grande jornalista Ulisses Capozzoli publicou no Facebook textos bem elucidativos a respeito do resgate das crianças na selva colombiana. Veja abaixo os textos agora reproduzidos neste Bem Blogado.

Por Ulisses Capozzoli, jornalista




A impressionante experiência das crianças colombianas (Lesly,13 anos; Jacobo,9: Tien, 4 e um bebê que completou um ano) encontradas vivas depois de 40 dias perdidas na densa floresta amazônica em consequência da queda do pequeno e precário avião em que viajavam está nas páginas de jornais, TVs e redes sociais de todo o mundo.

Como criaturas aparentemente tão frágeis, crianças na idade deles, podem ter sobrevivido a uma prova em que adultos sucumbiriam ao final de um período muito mais curto? Uma primeira resposta, não a única, é que são crianças indígenas, do povo Mucutuy, que conhecem os meandros de uma grande floresta, a maior floresta tropical da Terra, e tiraram partido disso ao menos para não serem ameaçadas por uma infinidade de plantas tóxicas de que poderiam terem tentado alimentar-se. Mas, ainda assim, estiveram expostas ao risco de picadas por serpentes de veneno letal, ou atacadas por onças, predadores abundantes na região que em condições específicas ameaçam humanos.

As crianças viajavam na companhia da mãe, morta na queda, e de mais dois adultos, também mortos, um deles o piloto do avião, que já havia sofrido um acidente que afetou suas condições operacionais, fato subestimado nas vastidões da floresta que ocupa terras não apenas colombianas, mas também brasileiras, bolivianas, peruanas, e das Guianas (a queda ocorreu nas proximidades da cidade de San Jose del Guaviare, Estado de Guaviare, que faz fronteira com o Amazonas, no Brasil, ainda que no extremo Norte, deslocada a Oeste).

A edição deste sábado (10) da versão eletrônica do jornal espanhol “El Pais” traz uma cobertura detalhada da saga dos pequenos sobreviventes depois de uma trapalhada do governo colombiano que anteriormente chegou a divulgar o encontro das crianças, versão desmentida em seguida, algo também típico das vastidões amazônicas.

No momento em que escrevo esta postagem as crianças estão sendo tratadas de ferimentos/picadas de mosquitos na localidade de São Jose del Guaviare, mais próxima ao local da queda, mas deverão ser transportadas para Villavicensio, maior e com mais recursos médicos, ou para a capital colombiana, Bogotá.

Conheço parte dessa região, entre Boa Vista e Caracas, ainda que em território venezuelano, mais a leste, na companhia do adorável Itamar Miranda que não está mais aqui e do pajé e líder indígena ianomâmi, Davi Kopenawa. Não é nada fácil. Além disso, eu e Itamar sofremos um acidente na Perimetral Norte, no Brasil, que nos mapas pode parecer uma rodovia como as que existem no Sul, mas é uma trilha de terra batida, crateras inesperadas e de isolamento lunar.

Andei, de um final de tarde a uma noite avançada, na companhia de um guia indígena um trajeto de uns 30 quilômetros em busca de socorro em uma missão religiosa e essas imagens voltaram à memória quando soube do acidente com as crianças: a lua crescente, entre o Escorpião e o Sagitário, atravessada por um avião que decolara de Manaus, seguindo para o Norte.

Os passageiros confortavelmente desfrutando de um lanche, talvez com cerveja gelada, enquanto caminhávamos pela trilha avermelhada com capim acima da cabeça, numa região infestada por onças, o que havia justificado nossa viagem a uma das terras ianomâmis. A perimetral dividida entre os dois trilhos das rodas de uma picape parruda.

As cenas que revivi quando pensei na dura sorte daquelas crianças que voltam para casa. Como elas sobreviveram? Maiores explicações devem ser oferecidas nas próximas horas, acrescentadas ao que já foi contado sobre a busca determinada feita por indígenas e militares colombianos, cobrindo as proximidades da queda do avião em que estavam os corpos dos mortos, mas sem sinal das crianças.

Um cão farejador que ajudou no encontro dos pequenos sobreviventes, o “Wilson”, continua desaparecido. Talvez as crianças falem dele e cada um de nós deseja que ele também retorne ao seu grupo de buscas, confirmando mais uma vez o maravilhoso amor que os cães dedicam aos humanos, o que quem convive com eles conhece muito bem.

Um relato fascinante do bom material publicado por “El País” avança rumo ao que pode parecer surpreendente, feito pelo índio Alex Rufino, do povo Tikuna, com terras que se estendem para o interior da fronteira com o Brasil. Guia e experimentado conhecedor da floresta, Alex não é um místico ingênuo, como muita gente gostaria de classificar. Com formação acadêmica em administração de empresas, Alex relata que no Estado de Apaporis, atravessado pelo rio de mesmo nome, onde ocorreu a queda do avião, localizado 16 dias depois, “há um tema espiritual bastante forte. Aí se concentram comunidades ou grupos não contatados [povos indígenas isolados] que tem todo um manejo espiritual e territorial”.

Com frequência, moradores locais se perdem tão profundamente na floresta [em atividades de caça ou coleta de frutos que encontram essas comunidades isoladas, relata Alex, acrescentando que “trata-se geralmente de pessoas pacíficas, humanos como nós, que acolhem e adotam [os perdidos] de alguma forma”.

Esses isolados podem usar práticas pouco ortodoxas para manter esses extraviados afastados de seus eventuais buscadores, enquanto cuidam da sua recuperação. Alex, que pesquisa temas de povos indígenas na fronteira com Brasil na Universidade Nacional da Colômbia, admite ser difícil a uma pessoa comum compreender a realidade complexa da floresta profunda.

Acrescenta que a Amazônia “não é apenas um bosque tropical, o mais extenso do mundo, nem seu pulmão, ou um intrincado inacessível de árvores e bestas selvagens, ainda que isso também seja real. É um território compartido por espíritos que vivem ali, mães desse lugar (…) Eles cuidam muito das pessoas”. Por isso, diz que “sempre acreditei que as crianças estivessem vivas”.

Em um dos textos sobre o encontro delas a repórter de “El País”, Emma Jaramillo Bernat, cita um trecho de “A Voragem” de José Eustasio Rivera, publicado em 1924, um clássico da literatura colombiana: “Oh selva, esposa do silêncio, mãe da solidão e da névoa/Que acontecimento maligno me deixou prisioneiro em seu cárcere verde?”

Tenho uma edição do livro publicado pela Edições 70 em que mergulhei há alguns anos. Vou retomar esta noite. O espírito da floresta é outro, distinto do cartesianismo com que construímos a base da realidade urbana/intelectual ocidental. Mas a realidade é mais ampla e, de muitas maneiras, apenas uma das possibilidades da ficção como me dei conta a partir de relatos de mentes sofisticadas comprometidas com o espírito da floresta.

Tenho andado farto de explicações fáceis, superficiais, com pretensão quase infantil de descrever todas as possibilidades.

Imagem da capa do post: Avião acidentado em que morreram os adultos que acompanhavam as crianças perdidas, incluindo a mãe delas. Crédito: Exército da Colombia

Segundo texto de Ulisses Capozzoli

CRIANÇAS PERDIDAS SE RECUPERAM EM HOSPITAL EM BOGOTÁ

As quatro crianças (ver postagem acima) perdidas durante 40 dias na floresta amazônica ao sobreviver a um acidente envolvendo a queda do pequeno avião em que viajavam já estão em Bogotá, capital da Colômbia. Informações da versão eletrônica do jornal espanhol “El Pais” relatam que elas (13, 9, 5 e 1 ano de idade) estão enfraquecidas pela alimentação precária, parte recolhida do que foi atirado de aviões que participaram da busca na floresta densa onde mesmo a luz solar chega ao solo de forma reduzida.

A determinação, agora, é localizar o cão farejador “Wilson” que teve atuação decisiva no encontro delas a aproximadamente cinco quilômetros do ponto em que o avião, por falha no motor, caiu sobre área floresta e matou os três adultos a bordo, entre elas a mãe das crianças.

O piloto, também motorista de taxi, comunicou a falha mecânica e teria feito uma tentativa de um pouso frustrado no rio Apaporis, no Estado de mesmo nome, próxima à fronteira com Brasil.

As crianças (uma delas completou cinco anos durante o período em que estiveram perdidos e o bebê chegou ao seu primeiro aniversário, de um ano) querem brincar e o mais impressionante: querem ler, segundo o relato de funcionários do hospital em que estão internados.

A região em que as crianças foram localizadas tem um histórico pouco encorajador e isso para destacar a habilidade da mais velha dos irmãos, Lesly, com apenas 13 anos, em assegurar, com a experiência indígena típica dos povos da floresta, a sobrevivência de todos, incluindo o bebê que ainda não havia chegado ao primeiro ano.

Em 1937, o presidente colombiano Alfonso Lopes Pumarejo (1886-1959) construiu na região uma fortaleza inexpugnável para isolar os criminosos mais perigosos. Na verdade, o inexpugnável, aqui, tem sentido amplo, já que esses condenados viviam ao ar livre e não encerrados em celas restritas. Mas estavam no coração de um terreno pantanoso, castigado pela malária e outros perigos o que significa dizer que os que se arriscassem a escapar assinavam suas próprias sentenças de morte.

As populações que se organizaram em torno desse presídio insólito, no entanto, tiveram suas próprias adaptações e adquiriram a habilidade de escapar do ataque de cobras de veneno letal, predadores como onças e uma ampla diversidade de plantas venenosas que podem matar um fugitivo faminto.

O espírito da floresta, tão insondável quanto ela, no entanto, na compreensão de comunidades indígenas ou próximas disso protegeu os pequenos sobreviventes do ataques de animais perigosos enquanto o conhecimento de Lesly evitou o consumo de alimentos tóxicos.

A mãe das crianças, Magdalena Mucutuy, ia com elas visitar o marido, Manuel Ranoque, que administrava uma reserva indígena próxima e havia fugido da localidade de Araracuara (“Toca de Araras” na versão indígena) por estar ameaçado pela guerrilha que castiga o país há anos, com promessa sempre renovada de que possa ser suspensa.

A intenção dele era reunir a família e mudar-se para a segurança capital, Bogotá.Na queda do avião, que o piloto teria tentado desviar para o leito do Apaporis, os três adultos a bordo morreram enquanto as crianças saíram ilesas. Ao menos dois deles deveriam ocupar a parte dianteira do Cessna 206, matrícula HK2803, pilotado pelo também taxista Hernán Murcia.

O avião já havia sofrido um acidente anterior e acabou reparado em condições referidas como insatisfatórias, o que é comum em toda a Amazônia, incluindo as terras que pertencem ao Brasil. Um avião é o único meio de uma viagem comparativamente rápida e mais confortável (a alternativa são as voadeiras, barcos com motor de popa que também apresentam riscos como o choque com troncos semi-submersos no leito de rios, além de velocidade baixa mesmo comparada a de um pequeno avião).

Aos seus salvadores, equipes indígenas com apoio de militares (que quase sempre diminuem o valor dos primeiros como ocorreu no encontro de corpos de um jornalista inglês e um funcionário da Funai mortos há um ano no também sombrio Vale do Javari, no Brasil) as crianças relataram o encontro com um cão que os acompanhou durante os dias de caminhada pela floresta (foram encontradas a cinco quilômetros do local da queda do avião) e que desapareceu sem que tenham um explicação para isso.

Mas também esse animal pode ter se desorientado em meio à vegetação alta e espessa que dificulta a chegada da luz solar no piso da floresta. Essas condições limitam a visibilidade a menos de 20 metros de distância, como revelaram as equipes de busca.

O desafio, agora, e isso envolve especialmente os militares, é encontrar “Wilson”, o cão farejador responsável pela localização das crianças. Ele também se perdeu em meio à mata densa e quase impenetrável, eventualmente por desorientação, como pode ter sido o caso do desaparecimento do animal que esteve com as crianças ao longo de alguns dias.

Com idade de cinco anos, “Wilson” agora está sozinho na floresta para onde foi levado para encontrar a pista das crianças perdidas. Ele nasceu em um quartel e, para os militares colombianos, é uma questão de honra e mérito encontra-lo e leva-lo de volta para casa.

Que tenham toda a boa sorte nesta tarefa de manter firme a conexão entre homens e cães, uma amizade de milhares de anos em que partilharam tarefas de caça e lealdade que asseguraram a sobrevivência de ambos, com compreensão profunda e amorosa dos dois lados.

Pegada de botas militares/crianças e mamadeira para água/suco de bebê que integrou grupo de crianças perdidas na amazônia colombiana. Crédito: Forças Armadas da Colombia.

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