Cracolândia: tristeza e tinta fresca

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Por Paulo de Tarso Puccini, publicado em Jornal GGN  – 

É preciso reconhecer… Não ocorreu o que inicialmente se esperava como resultado das ações de maio de 2017 escolhidas para uma intervenção na região da Luz, na área tristemente conhecida como “cracolândia”. Abdicar de certezas apressadas sobre uma situação complexa seria um bom começo para a discussão do drama social vivido na região.

Em maio deste ano, realizou-se a primeira das campanhas militares que retomou, de forma afoita e enfurecida, o padrão de intervenções de 2012, que já não tinha produzido resultados efetivos para alterar a situação dos usuários de drogas. O atual Prefeito e o Governador, em meio à campanha midiático-militar na região, anunciaram o feito: o fim do Programa De Braços Abertos. E não só, também um pomposo: ─ “a cracolândia não existe mais”.




Esta tem sido a fórmula repetida que desconsidera uma característica comum dessas pessoas: condição de exclusão social e miséria. A intervenção adotada nada tem de novo, muito menos de redenção. É um recomeço do mesmo: ação violenta e perda de credibilidade de uma proposta que possa disputar o futuro dos usuários de droga para uma vida melhor que não seja aquela que os traficantes e a droga atrativamente lhe oferecem. A volta ao áspero desamparo da rua, lixando a contrapelo os vestígios de cidadania.

Diante do fracasso de campanhas como a realizada, que apenas mudam de endereço os usuários e espalham desamparo pela cidade, ocorre de fato uma corrosão dos vínculos e da credibilidade das ações públicas. Advém a seguir a proposição “inelutável”, prenha de franco autoritarismo, da internação compulsória em larga escala. Um manicômio atualizado, fruto do empreendedorismo moderno e típico de empedernidos gerentes de dramas sociais. Uma homenagem aos interesses econômicos envolvidos na indústria da internação e a um desenho-maquete de empreendimento imobiliário com o qual, nas linhas exuberantes do concreto armado, se oculta o desdenho com o sofrimento humano.

A administração municipal anterior, com o Programa De Braços Abertos, adotou uma prática inovadora e humanizadora, alternativa ao que costumeiramente se fazia. Procurou fortalecer o encontro dos profissionais de saúde, propondo uma ação não exclusiva da Saúde e estruturando o trabalho na perspectiva e amplitude multidisciplinar e intersecretarial. Acumulada a confiança dos moradores da região, ao final de 2013, apresentaram-se as propostas: desmonte da “favela”; respeito à dignidade e aos direitos das pessoas; ação sem violência; acesso à moradia; oferecimento de trabalho e atividades de formação profissional, renda e alimentação. Esses pilares do Programa tinham como princípio a reinserção social das pessoas, a “cura da completa exclusão”, favorecendo o controle do uso da droga, abraçando os vulneráveis e abrindo as portas da cidadania a essas pessoas. Propôs, como alternativa principal, o tratamento em meio aberto, visando um cuidado integral e o uso da internação, quando necessária, limitado a situações clinicamente específicas, rompendo o conhecido círculo vicioso: interna–desinterna–volta à rua–interna.

Com o intenso diálogo com os ocupantes dos 141 barracos, em 14 de janeiro de 2014, com a ajuda dos próprios moradores, a “favela” foi desmontada com inclusão e sem violência, em contraposição à forma como era anteriormente tratada essa população.

Os resultados alcançados no início de 2015 são indicações para caminhos a serem desenvolvidos. Cerca de 400 beneficiários passaram a ter ocupação, profissionalização, renda, alimentação, moradia, documentos e respeito; 80% das pessoas relatavam redução no uso da droga; houve inclusão em programas de tratamento nas UBS da região (sífilis – 49 pessoas, HIV – 32 pessoas e tuberculose – 49 pessoas), além do atendimento odontológico, muito demandado. Ocorreu redução nas taxas de crimes violentos na região; 86% dos participantes mantinham frequência nas frentes de trabalho, sendo 16 com carteira assinada; e, adesão às atividades de profissionalização. O Programa desenvolveu acompanhamento cotidiano dos beneficiários por trios de técnicos da Saúde, Assistência e Desenvolvimento Social e do Trabalho, articulando as ações de saúde com a rede se serviços existentes.

Atividades culturais, rede de voluntários atuando em parceria e visitas de apoio movimentavam permanente e positivamente a região. O esforço coletivo, tendo como princípio o resgate social das pessoas, possibilitando ganhos de autonomia dos indivíduos e ressignificação das suas vidas, foi amplamente reconhecido. Mudava-se concretamente o paradigma da imagem do usuário de drogas em situação de rua de uma pessoa que em vez de violência necessitava de apoio público e da comunidade. Em meados de 2015, o Programa De Braços Abertos foi avaliado pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas (rede de organizações não governamentais) como muito positivo na vida de 90% dos beneficiários. Identificou que eles tiveram, pela primeira vez, direitos mínimos assegurados. A pesquisa também apontou imperfeições, mas destacou o pioneirismo do Programa.

O Programa sobreviveu em meio a forte reação contrária que insistia em desconsiderar suas conquistas. De fato, o Programa no formato e amplitude desenvolvidos era inovador e o processo de mudança gradual. A infraestrutura geral do Programa precisava de melhorias, em especial, a oferta da moradia que, inicialmente focada em hotéis na área, necessitava ser complementada e evoluir para formas de moradia descentralizadas que valorizassem e incentivassem a conquista da autonomia que vinha ocorrendo.

Entretanto, em qualquer condição é certo que o Programa não suportaria o livre atuar dos traficantes, não obstante as insistentes solicitações da administração municipal para que os responsáveis estaduais atuassem no combate ao tráfico e cumprissem o seu papel, de forma permanente, vigorosa e com base em informações de inteligência. O estardalhaço da recente ação militar (maio de 2017), com o anúncio da prisão de 52 traficantes na área, nada mais revela que o fracasso das ações de segurança.

O tráfico organizou-se contra as ações do Programa De Braços Abertos. As ameaças cresciam e os atuantes do Programa, profissionais dos serviços municipais e de organizações da sociedade civil, viram-se cada vez mais em condições penosas de trabalho. O tráfico incentivou a baixa frequência dos beneficiários na frente de trabalho, infiltrou pessoas nos hotéis e rearmou de forma crescente a venda de drogas abertamente nas ruas da região, remontando tendas para o comércio da droga. Em meados de 2016, era documentado que a “favela” da “cracolândia” retomara o espaço público e o controle sobre os usuários, agora claramente com uma ação coordenada pelo tráfico.

Resta o que não foi apagado, muito mais que jatos d’água em dias frios, “muros pintados de cinza, tristeza e tinta fresca”. Resta a marca da gentileza do cuidar; o incansável trabalho executado por centenas de profissionais e agentes da comunidade que se dedicaram de forma generosa à busca de uma alternativa respeitosa e humana. Lembranças concretas de caminhos possíveis que podem contribuir para uma correção dos rumos atuais.

Paulo de Tarso Puccini – Médico sanitarista com doutorado em saúde pública, foi Secretário Adjunto da Saúde do Município de São Paulo, jan/2013-jun/15.

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