Amanhã recomeço a evitar o sal e a comer mais sol I

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E na coluna “A César o que é de Cícero” o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista conversa com o seu pai, que já partir fisicamente deste mundo no qual nem sempre filhos e pais falam o idioma da compreensão mútua. Lembrei-me de que li em algum lugar sobre o grande escritor Gabriel Garcia Marquez, quando lhe perguntaram sobre sua relação com o pai. Gabo, que foi criado pelos avós em razão da situação financeira da família teria respondido: “agora que nossas idades estão mais próximas, estamos indo muito bem” (Washington Araújo).

Vamos às reminiscências de César para com o pai, aqui segmentadas em duas partes. Esta é a primeira.




Para Cícero Romeiro Batista, in memoriam

“Permita-me fantasiar um pouco. Então, a partir de gestos que previamente tínhamos combinado após anos de árduo treinamento, eu te faria perguntas com os olhos: Quer mais ou menos ar-condicionado? A coberta lhe cai bem? Eu posso dispensar a enfermeira e ficar aqui um pouco mais; também posso me dispensar e deixar que fiques a repousar, para que eu não te veja assim, convalescente. O que achas? Se sim, pisque uma vez. Se não, pisque duas.


A tal grande idéia de comunicação por meio de piscar dos olhos só me ocorreu depois de a partida. Talvez não saibas, mas ela me foi decalcada de um filme francês chamado “O escafandro e a borboleta”.
Que não caçoes deste meu olhar tão retrospectivo. Idéias me ocorrem, mas nem sempre em momento oportuno. talvez tivesses forças ainda para me mandar para-a-puta-que-me-pariu, o que eu veria como um grande sinal de humanidade.

Corria longe a tua fama de sujeito bem-alinhado. Fosse de ternos azuis ou marrons, fosse de blazers, jaquetas, camisas de botão; qualquer peça a teu corpo se ajustava praticamente como se tivesse sido feita sob medida. Exceção seja feita às bermudas, que sempre me pareceram um tanto jovens demais, como se tivesses certo receio em envelhecer.


Quando eu me esforçava a enfiar as camisas de botão por dentro das calças, ao me olhar no espelho não me reconhecia. Aquele não era eu, não ficava bem de qualquer modo. Então de súbito eu desarranjava toda a cena: as camisas ficavam amassadas nas pontas e eu não sabia se isso ia bem ou mal com o espírito das roupas. Quando mais velho, comecei a cortar o cabelo com regularidade, eles já estavam a ficar grisalhos. A calvície não me veio.


Sem jamais ter te dito, não é que passei a invejar as tuas suaves entradas, os teus cabelos ondulados nas pontas? Não farias feio como modelo de revista. Eu guardo algumas destas fotos comigo. Gosto de imaginar que alguém te pediu para fazer pose para as fotos.


E o episódio da barba não poderia passar batido. Isto porque eu, pelo que me consta, só te vi duas vezes sem barba. Uma ainda na infância. Não sei se te disse do meu espanto ao te ver, meu pai, sem barba e não te reconhecer. Era como se um estranho tivesse tomado sem maiores explicações teu posto e eu tivesse que me acostumar com a estranha, pouco familiar, realidade. A segunda vez foi no hospital.


Em um esforço de imaginação vejo-te a passar pelas ruas de três bairros a fazer caminhadas matinais. Fôlego de atleta. Os quitandeiros, os porteiros, os varredores, as babás te conheciam. Não caçoavam do senhor de meia-idade elegantemente vestido passar como se estivesse apressado. Era apenas talvez uma das extravagâncias das pessoas que por ali aproveitavam as ruas arborizadas para se exercitarem.
Depois, já em casa, de banho tomado, preparavas o almoço.

À tarde chispavas para longe de casa, para onde a cidade grande é ainda maior, tão maior que toma ares de aldeia. Todos fumavam, eras a única exceção, o menos um. Acabou que ficaste tão habituado ao cheiro do tabaco que já não ficavas mais incomodado. Agradável quando aceso, foi o que disseste um dia, em relação ao cigarro. Que juventude era essa incapaz de limpar os próprios cinzeiros?


Naquele lugar, ao lado de gente de inteligência européia, teu coração mal cabia na pasta. Sombras te causavam palpitações estranhas, inseguranças. Por isso, vigiavas cada passo, cada gesto, cada palavra e ainda assim elas te escapavam boca afora. Nada era mais perigoso que isto, que a própria revelação de as fraquezas; com as quais haverias de lidar, diga-se de passagem, pois não era para isso que te formavas, depois de macaco velho, terapeuta?

Não sei se te levavas tão a sério. Só imagino que para outros tantos não era fácil pegar dois ônibus à noite de volta para casa, sem reclamar das baldeações, dos pontos escuros, nem temer as criaras da noite que poderiam perguntar se tinhas fogo ou algum trocado. Ao final da noite, de chinelas, ainda tentarias compreender uma passagem obscura de Lacan em meio ao ruído da televisão. De quando em quando, conseguias.

E qual é a minha urgência agora senão a de proteger os meus miúdos? Protegê-los de quem, de mim mesmo? Seja como for, eles estão crescendo a olhos vistos. Nunca foram mirrados. São fortes e sadios, tagarelas, cheios de malandrices. O menino ainda tem algumas lembranças da pessoa. Apenas não gosta de tocar no assunto, decerto por ser para ele um tanto doloroso. Sabe como é que é, é como diz o ditado: “Gato escaldado tem medo de água fria.”


De quando em quando, ele diz se lembrar de uma coisinha ou de outra. isto sem o auxílio mnemônico da fotografia. Ele não gosta de fotografia, coisa antiga que lhe parece, não lhe desperta interesse. Eu, ao contrário, conservo algumas, poucas, é certo, mas em número suficiente para me avivar as lembranças. Há uma, por exemplo, perto da minha mesa, onde estão os dois em uma gangorra de praça. Quem haveria de dizer que o velho moreno e o menino louríssimo são avô e neto?


Já a menina, coitadinha, era muito pequetitita, não se lembra de nada. Mas, talvez para compensar, vai saindo como a avó, cheia de tagarelice bem-humorada. Fica-se sem saber direito quem toma conta de quem quando as duas se encontram.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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