Americanos abusam da bebida para enfrentar a pandemia

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Por David H. Jernigan, The Conversation, compartilhado de Projeto Colabora – 

Especialista alerta que consumo excessivo pode causar dramas agora – como aumento a violência do doméstica – e impulsionar problemas de saúde no futuro

Loja de vinhos no Brooklin, Nova Yord, onde pontos de venda de bebidas alcoólicos – para entregar ou levar- foram considerados essenciais: consumo em alta nos EUA durante a pandemia (Foto: Angela Weiss/AFP)

Em meio à epidemia de covid-19, ficou mais fácil comprar bebidas alcoólicos do que papel higiênico ou ovos. Em todos os Estados Unidos, os governadores consideram a venda de álcool um negócio essencial e diminuem as restrições para permitir a entrega em domicílio e a venda de coquetéis para levar, lançando uma boia de salvação econômica a um grupo de pequenos negócios.




As vendas de bebidas alcoólicas são realmente essenciais? Segundo o governo federal, pouco mais da metade dos americanos acima de 18 anos (55,3%) consumiu bebidas alcoólicas nos últimos 30 dias; pouco mais de um quarto bebia em binge – mais de quatro bebidas para mulheres ou cinco para homens em duas horas – e 1 em 17 (5,8%) tinha um transtorno por uso de álcool, variando de leve a grave. Para aqueles neste último grupo que são realmente dependentes dele, o álcool pode realmente ser essencial.

Houve aumento nas vendas de vinho em 27,6%, de bebidas destiladas em 26,4% e de cerveja em 14% em comparação com a mesma semana do ano anterior

Mas a evidência até agora na epidemia é de que as pessoas em geral estão comprando mais bebidas alcoólicas e em quantidades maiores. Como alguém que passou 30 anos estudando a ligação entre a política para consumo de álcool e a saúde pública, sei que isso provavelmente resultará em um aumento nos transtornos por uso de bebidas alcoólicas nos próximos anos.

De acordo com números da Nielsen, empresa especializada em pesquisa de mercado, na semana que terminou em 14 de março, pontos de venda como lojas de bebidas e mercearias registraram aumento nas vendas de vinho em 27,6%, de bebidas destiladas em 26,4% e de cerveja em 14% em comparação com a mesma semana do ano anterior. As vendas de vinho em caixas de 3 litros – uma moda americana – aumentaram 53% e os pacotes com 24 latas de cerveja aumentaram 24%. As vendas on-line de bebidas alcoólicas na mesma semana também aumentaram 42% em relação ao ano anterior.

Parte desse aumento é, sem dúvida, para estoque doméstico, especialmente porque em muitos locais os bares e restaurantes estão fechados. Mas também sabemos, por experiências e estudos anteriores, que períodos de estresse econômico e psicológico como este da pandemia de covid-19, têm dois efeitos no consumo de bebidas alcoólicas As pessoas têm menos dinheiro para gastar em álcool, o que reduz seus gastos; ao mesmo tempo, é provável que bebam mais para aliviar o estresse que estão sentindo. Em resumo, eles estão comprando quantidades maiores de bebida alcoólica mais barata.

Esse aumento no consumo de bebidas terá um impacto de curto e longo prazo na saúde e na segurança. A curto prazo, o abuso de álcool suprime vários aspectos da resposta do sistema imunológico do corpo, com efeitos particulares na capacidade dos pulmões de combater infecções como a covid-19.

Violência doméstica e abuso de crianças

O aumento nas vendas em lojas de bebidas e mercados e o incremento do consumo doméstico provavelmente também afetarão a violência interpessoal. Adicionar álcool a uma situação possivelmente violenta é como derramar gasolina no fogo aceso. É mais provável que as vendas de bebida alcoólica para levar estejam mais associadas a crimes violentos do que beber em um bar ou restaurante, pois o consumo de bebida ocorre sem a presença de atendentes e outros clientes. Várias cidades estão relatando reduções nos crimes contra a propriedade na sequência da pandemia, mas um aumento na violência doméstica. Os casos de abuso infantil também podem estar em alta – embora ainda não haja dados nacionais disponíveis nos Estados Unidos, um hospital de Fort Worth – cidade do estado do Texas com 900 mil habitantes – que normalmente atende oito casos desse tipo em um mês recebeu seis em apenas uma semana.

Quanto aos efeitos a longo prazo, um estudo do impacto do surto de SARS nos funcionários do hospital de Pequim em 2003 encontrou uma maior probabilidade, nos anos seguintes, de sintomas de abuso ou dependência de bebidas alcoólicas associados à quarentena ou ao trabalho em ambientes de alto risco, como enfermarias dedicadas ao tratamento pacientes com doença respiratória. Uma maior exposição ao ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center foi associada a mais bebedeiras após um ano e maiores chances de dependência de álcool um e dois anos depois. Após o furacão Katrina, o consumo de álcool aumentou. Após o furacão Rita, o consumo de álcool por adolescentes cresceu na Louisiana. O que isso sugere é que, durante a crise do coronavírus, as pessoas estão adotando padrões de consumo mais pesado que aparecerão no futuro com taxas mais altas de transtornos relacionados ao abuso de bebidas alcoólicas.

As autoridades em todos os níveis precisam estar conscientes dos prováveis efeitos negativos do aumento do consumo abusivo de bebidas alcoólicas em épocas como esta e usar ferramentas políticas à sua disposição para mitigar esses efeitos

Como os governadores declaram essencial a venda de álcool, as cidades ainda podem usar alavancas políticas para aplainar essa curva de problemas do uso de álcool. Antes do surto de coronavírus, o CityHealth, um projeto da Fundação Beaumont, entidade filantrópica de saúde pública, classificava as 40 maiores cidades do país em relação à legislação local própria sobre a venda de bebidas alcoólicas dentro de seus limites territoriais.

Carregamento de bebidas para loja em Washington, capital dos EUA: aumento de vendas de vinhos, destilados e cerveja (Foto: Nicholas Kamm/AFC)
Carregamento de bebidas para loja em Washington, capital dos EUA: aumento de vendas de vinhos, destilados e cerveja (Foto: Nicholas Kamm/AFC)

Oito cidades podem regular a venda de bebidas alcoólicas, incluindo a limitação de horas e dias de venda, o estabelecimento de valores máximos de compra e a proibição de descontos nos preços – fatores conhecidos por aumentar o consumo de álcool. Se necessário, elas também podem fechar instalações. Outras oito têm elementos de controle local sobre a venda de álcool, mas não têm jurisdição sobre parte dos estabelecimentos novos ou existentes. As 24 cidades restantes não têm qualquer controle local: ou porque são impedidas pelas leis estaduais, que proíbem a ação local, ou porque não assumiram expressamente essa autoridade em seus códigos de cidades. No entanto, mesmo nessas cidades, as autoridades públicas e de saúde pública poderiam usar poderes de emergência para limitar ou interromper a venda de álcool em suas jurisdições.

A Força-Tarefa sobre Serviços Preventivos Comunitários (CPSTF) – um painel independente de pesquisadores e especialistas em saúde pública e prevenção de doenças de diversas áreas – descobriu que o número de lojas que vendem bebidas alcoólicas em uma área e como elas servem e vendem aos consumidores é importante para a saúde pública. A  CPSTF, que reúne integrantes de órgãos públicos e organizações da sociedade civil, concluiu que limitar a densidade de pontos de venda e as horas e dias que eles podem vender são medidas eficazes para reduzir os problemas provocados pelo consumo de álcool.

Existem muitos relatos anedóticos de lojas limitando quantos rolos de papel higiênico os consumidores podem comprar, mas as pessoas estão saindo com carrinhos lotados de bebidas alcoólicas. As autoridades em todos os níveis, de pequenas cidades às instâncias estaduais e federal, precisam estar conscientes dos prováveis efeitos negativos do aumento do consumo abusivo de bebidas alcoólicas em épocas como essa e usar ferramentas políticas à sua disposição para mitigar esses efeitos. A bebida alcoólica pode ser essencial para alguns, mas o excesso é perigoso para muitos, agora e no futuro.

*Professor de Gestão, Direito e Políticas de Saúde da Universidade de Boston (EUA)

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