As voltas que o senhor M dá

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Não sei se vou, não sei se fico
Se eu fico aqui, se eu fico lá
Se estou lá tenho que vir
Se estou aqui eu tenho que voltar
(Martinho da Vila)

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos apresenta o senhor M e as as suas múltiplas andanças.




Conhecemos muito bem o senhor M. Tanto que o apelidamos de Contra Mão. Sim, este senhor professor nos dá uma aula de como não comparecer ao local em que pensamos que ele estará quando se trata de beber umas geladas e bater um papo gostoso, do qual é mestre. Mas, profissional de boa cepa, cumpre com seus horários e locais de trabalho direitinho.

O nosso personagem foi vítima de um erro geográfico da cegonha. Na verdade, a “encomenda” cairia na Nova Zelândia, mas não havia lei seca na época e a ave Sedex, bêbada, o soltou de paraquedas na imaginária e quente Benguela descritas aqui pelo César.

Sendo assim, seu fuso horário é totalmente neozelandês. Para se ter uma ideia, ele acorda, cronometricamente, todos os dias às 4h39 da madrugada. Nos dias de folga, portanto, 11 horas da manhã, para ele, já é noitinha. Daí o Contra Mão.

Dito isso por este intrometido editor, senhor W, vamos às peripécias geográficas do senhor M. Pegue caneta e papel para não se perder ou o Waze.

“Há certa dificuldade em narrar a semana de trabalho do senhor M. A propósito, é difícil inclusive estabelecer precisamente onde ele mora. A não ser, por óbvio, que se diga que ele seja do tipo que mora em seus sapatos. Lutando contra os moinhos das intempéries, dos engarrafamentos e da violência, nosso intuito neste texto é esboçar deste homem um trajeto, uma espécie de linha do destino, a fim de entendermos por onde ele passa e o que passa com ele. Sem mais delongas, sigamos as evidências: o senhor M é professor de filosofia em três escolas em Raio de Jané; e sua residência oficial fica na ilha de Piquete, acerca de cinquenta minutos do continente.

Por isso, é preciso calcular a hora correta do embarque na Estação das Barcas se o senhor M não quiser ficar literalmente a ver navios. O que, convenhamos, para gente como ele não é de todo ruim.


Tendo embarcado no horário correto, o senhor M chegará ao continente a tempo de fazer duas baldeações. Pegará primeiro uma espécie de bonde e depois o trem em direção ao subúrbio da cidade. Ele ou qualquer um que se proponha a fazer tal deslocamento levará cerca de duas horas para atravessar a cidade, pelo menos. Pode-se fazer o trajeto de Uber, decerto; mas uma corrida dessa distância pesa no orçamento e portanto deve ser feita em casos da mais absoluta urgência.


Sendo um homem que preza a pontualidade, o senhor M dificilmente se atrasa. Para tanto, ele se obriga a sair de casa com muita antecedência. Não é raro que ele seja o primeiro a chegar às escolas, por vezes umas duas horas antes do início do turno. Então o senhor M, como bom professor que é, aproveita o tempo que tem para rever as aulas, corrigir provas, por as mensagens em dia, mantendo-se bem informado.


Houve um tempo em que o senhor M se hospedava em Nópolis na casa de amigos às segundas-feiras, às vezes em outros dias, a depender das circunstâncias. A violência na cidade fazia com que ele preferisse dormir em um sofá de três lugares a continuar sua jornada de volta em direção à Piquete.


Naqueles tempos, antes de dormir, o senhor M e seu anfitrião, o senhor C, costumavam trocar ideias acerca daquilo que os incomodava na educação e na política do país. Eram discussões acaloradas que provavelmente varariam a noite não fosse o fato de ambos terem que acordar muitíssimo cedo.

As conversas entre ambos ficaram temporariamente suspensas devido a um ocorrido digno de nota: de uns tempos para cá, o senhor M reaveu sua antiga residência em Benguela. Além do valor sentimental, pesou muito em sua decisão de retornar à casa o fato desta ficar a uns quinze minutos de ônibus de sua segunda escola.


Ele achou boa a mudança, pois agora, além de não precisar mais dormir em um sofá, ele pode espirrar à vontade sem incomodar a nenhum dos Cs. Além disso, pode visitar os RRs e o senhor J sempre que as agendas coincidirem.


Na terça à tarde, ao senhor M basta pegar um ônibus que em coisa de uma hora ele estará na sua terceira escola, duas horas antes do início do turno. Na terça-feira à noite, ele pode voltar à Piquete. Isto é, isto se não houver notícias impactantes sobre a violência que exijam mudanças de planos ou se houver um convite para retornar à Benguela devido a uma festa de um sobrinho ou de uma sobrinha.

Pode ocorrer do senhor M também ir pernoitar na casa de sua namorada, a senhora E, cuja residência fica em Santatrês, a aproximadamente uma hora e quinze minutos de Uber da escola onde ele está.


Voltar para Benguela ou ir para Santatrês significa que o senhor M muito provavelmente só chegará à ilha de Piquete por volta do meio-dia da quarta-feira, o que fará com que ele tenha um dia e meio para dar conta de todos os afazeres que deixou para trás nos dois dias que esteve ausente de casa devido ao trabalho.

Quando pode, o senhor M capricha na faxina, rega plantas, lava roupas, faz caminhadas, visita amigos, tira fotos, cochila de meias soquete e havaianas e procura o pedreiro que lhe prometeu terminar a obra no banheiro do loft de Piquete até sábado algumas vezes.


Mal rompe a manhã de sexta-feira e o senhor M já está de volta à barca para cumprir a jornada em duas escolas. Para efeitos de comparação, a rotina de sexta-feira é igual à de terça. Ele ficará da manhã até a noite envolvido na tarefa de não se atrasar na condução para não se atrasar no trabalho, procurando chegar pelo menos duas horas antes do início do turno.


É difícil, arriscado até, saber exatamente onde ficará o senhor M sexta à noite depois do trabalho. Depende de inúmeros fatores, de cálculos (renais, inclusive), de algoritmos, de consultas a búzios.

O senhor M, entretanto, parece estar disposto a voltar para casa para contar a todos as aventuras por que passou com seus sapatos durante a semana, mesmo sem saber exatamente para qual casa ele deva ir.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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