Dia internacional da Mulher

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Mais um belo texto, com direito a poema, da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta feita, César homenageia uma aluna, pela qual homenageia todas as mulheres do mundo.

(Para Mariana Rosa Urbano)
(Women is the nigger of the world) Mariana, aluna da EJA (Educação de jovens e adultos), foi uma das mulheres mais inteligentes que conheci. Tenho orgulho de ter tido a oportunidade de ensiná-la e aprender com ela. Em sala, era curiosa, articulada, participativa, engraçada, atributos com os quais exercia uma liderança admirável sobre a turma, sem excessos nem disputas.




Era evangélica. Sua opção religiosa, entretanto, nunca me preocupou. Com Mariana, eu, o professor dela, tive aulas de esperança. Um dos segredos da educação talvez esteja em aprender a ouvir as demandas de pessoas como ela. Porque, durante minha breve estadia na EJA, conheci muitas pessoas como Mariana.

Muitos de nós, feministas, lutamos ainda com as reminiscências de nossa formação patriarcal. Mariana, não. Já tinha nascido livre desta maldição. Ou tinha aparado certas arestas que nós, tão pró-Mariana, ainda não conseguimos.
Espero que ela tenha conseguido lidar com a pressão alta.

E é pra ela que dedico este poema:

Minha filha de olhos enxutos
O que fazer em tempos tão brutos?
Eles querem que você volte pra casa
(as solas da Moleca estão soltas)
Que você esquente a comida
Depois, que veja tevê
Que tire uma soneca
Quando os pratos estiverem limpos
Que você cuide de seus irmãos pequenos
Que você não abuse da maquiagem
Que se prepare pra se casar e ter filhos
Que seus filhos cresçam debaixo de suas asas
Que você não reclame da tripla jornada
Que você não se esqueça da sua boneca
Que você seja a mesma, apesar das tatuagens e dos piercings
Que os livros que você leia sejam instrutivos
Que você se esconda dentro do seu sorriso
Que você vá à janela e fique esperando
Que a cidade se ilumine sobre seu rosto
E esperar
E esperar
Até que uma professora de cabelos vermelhos
Te dê lápis de cor e papel

Minha filha, de olhos pardos
O que fazer depois do resguardo?
Enfrentar o escárnio dos outros alunos?
Arrancar os cabelos na raiz, fio a fio?
Rasgar os adesivos nas folhas secretas do caderno?
Sapatear no abismo antes de ir pro inferno?
Depois, criar com coragem os dois filhos?
Depois, copiar a lição do quadro-negro?
Depois, acenar para um ônibus vazio
A desviar dos olhos que vigiam seus passos?
Depois, passar de cabeça baixa mas atenta
Por terrenos baldios com teu escudo de livros?
Depois sonhar com um par de sapatilhas
Que oscilam, com se estivessem sobre um palco de tábuas soltas?
E esperar
Esperar
Até que uma professora de cabelos crespos
Diga algo com o que você se identifique

Minha filha, de olhos de espanto
O que fazer quando se quebra o encanto?
Tingir o cabelo de azul com papel colorido
Rasgar as pernas da calça com uma tesoura de ponta
Ir ao encontro das amigas do bonde
Chorar sozinha enquanto outras gargalham
Se equilibrar no salto depois de tanto vinho
Ver o quarto rodando e os pais dormindo
Passar mal, mas não ter coragem de ir ao banheiro
Entender que a culpa não é sua pelo ocorrido
Comer de boca fechada, com o celular desligado
Descer a rua aos domingos com a bíblia debaixo do braço
Com uma saia de lycra até os joelhos
Com uma calça jeans com os bolsos bordados
Com um par de brincos de metal antialégico
Com sapatos de fivelas douradas descascados no bico
Com a camisa branca abotoada até o pescoço
E esperar
Esperar
Esperar

Que a manhã de domingo ilumine seu rosto

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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