Ficaria melhor em terza rima

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Mais uma estrofe da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta feita, o personagem Bucco* vira poeta. O belo texto em prosa sobre a poesia de Bucco, preocupado com o fluxo de capital, me trouxe à mente o sociólogo Betinho com esta sua afirmação, que pode inspirar versos bucconianos: “A tecnologia moderna é capaz de realizar a produção sem emprego. O diabo é que a economia moderna não consegue inventar o consumo sem salário.” 

““Ficaria melhor em terza rima?*”, se indagou Bucco, o que vive de bicos. A despeito da tão alardeada descendência italiana, ele era um daqueles sujeitos que não conheciam de cor os versos da “Divina Comedia” de Dante. Paciência. O jeito era fazer o poema com o que estava a seu alcance. Foi o que ele fez, mais ou menos como quem cata milho, como quem cata feijão, devagar e sempre, separando os caroços que prestam dos que não prestam.





Era engraçado: quando Bucco escrevia versos não lhe vinham coisas do coração. Não era um lírico de dó-no-peito, não falava de amores e desamores. O que lhe rondava era a vida prática do trabalho, de que tudo dependia, segundo seu entendimento. Ele chegou ao mote do poema quase que por acaso, ainda que depois de certa investigação interior: ele deveria falar dos altos e baixos da vida de gente como ele, de como ciclicamente a vida material lhe parecia florescer e perecer em consonância a uma lei que não era propriamente a da natureza. Ele quereria falar de chegadas e partidas de outras coisas.


Foi adentrando a porta onde se instala a máquina do mundo. Diversas imagens revoaram sobre sua cabeça. Mas ele não se fez de rogado. Veio-lhe a imagem de uma nuvem de gafanhotos para ilustrar a fuga do capital. Desta ele gostou. Sim, talvez o fluxo de capital ameaçasse a vida tanto quanto uma nuvem de gafanhotos é capaz de devastar uma plantação. “O que haveria de mais insaciável que o lucro, invenção dos homens”, se indagava Bucco, “a ponto de por em risco a própria vida no planeta?”


Até onde Bucco poderia ir em divagações, já que ele não tinha estudo formal na área da economia, não se sabia. Mas, em todo caso, o resultado promissor era suficiente para ilustrar o movimento da gangorra entre a esperança e a frustração da qual Bucco e sua gente pareciam não sair. Isto para não dizer que de quando em quando a crise atingia mais gente ainda, gente que não estava mais acostumada a saber se virar em épocas difíceis.


Por sua própria conta e risco, Bucco deu um passo à frente e foi se enveredando no insidioso labirinto no afã de acompanhar seus pensamentos fugidios. Ele começara a pensar em que medida as coisas que acontecem lá fora afetam os que estão aqui, por exemplo. E levando em consideração que se deve ver a tecnologia tanto por seus benefícios quanto por seus pontos cegos, ele a viu como algo que pode ser salvação e a praga de muitos, a depender do momento e de seu uso. Espantou-se com seu raciocínio, não parecia lá coisa muito dele, era como se algum espírito arguto lhe tivesse soprado a frase no ouvido. A umidade entrou pelas solas de seus sapatos.


O que você terá de levar à boca, Bucco? Qual será seu próximo sacrifício? O certo é que ele não sabe direito. Se soubesse, ele faria previsões e provisões, seguiria à risca a máxima da fábula da formiga e da cigarra, mudando de personagem de vez em quando para não se entediar.

Ele sabe que agora o céu está cinza, amanhã talvez limpe. Em dias ruins, a gente tem que arranjar um jeito de sobreviver, se possível com dignidade. Em dias bons, não se pode perder tempo de limpar o terreno e recomeçar, sem desembarcar da gangorra, por ora, que ainda não era o momento oportuno.


Ao final deste pensamento, Bucco se lembrou de que se seu avô tivesse ido para a América do Norte, talvez o neto tivesse se transformado em um capiau norte-americano de cabelos crespos, de pele escura e olhos sarracenos. Talvez estivesse rico, cuspindo fumo diante da miséria do mundo. Quando a máquina do mundo se fechou, o chão estava coberto de redondilhas e Bucco tremia de frio.

*De acordo com a inteligência artificial instalada no meu computador, “A terza rima é uma forma poética que consiste em um esquema de rima interligada que segue o padrão aba bcb cdc ded e assim por diante. Ela foi criada por Dante Alighieri e é usada em sua obra-prima “A Divina Comédia”. A terza rima é uma forma poética desafiadora e complexa que exige habilidade e criatividade do poeta para manter o esquema de rima interligada ao longo de toda a obra.””

Nota:
Segue o poema que inspirou esta história de Bucco:

Do fluxo do capital (Cícero César)

Pra saber quem se deu bem
Pra saber quem se deu mal
Basta seguir o rastro
Do fluxo do capital

Nuvem de gafanhotos
Só que agora é digital
Basta seguir o canhoto
Do fluxo do capital

Quero ver só quem agüenta
Chegar até o final
Sobe fogo pelas ventas
Do fluxo do capital

Sem carne e sem polenta
Sem pimenta e sem sal
Esse monstro se alimenta
Do fluxo do capital

Penhorei minha viola
Já não sou mais musical
Só queria uma esmola
Do fluxo do capital

Aumentou a violência
Em quase todo local
É mais uma conseqüência
Do fluxo do capital

Isso é meu, particular
Mas também universal
O mundo é o lugar
Do fluxo do capital

Mas se eu for lá pra rua
Fazer um protesto e tal
Vão dizer que sou culpado
Da fuga do capital

Por isso eu fico em casa
Mas não acho legal
Proteger a retaguarda
Do fluxo do capital

Acenei meu lenço branco
Adeus, voltei ao normal
Esperei um bom retorno
Do fluxo do capital

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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