Homofobia, STF, Bolsonaro, Congresso. E o Lula?

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Por Marcelo Auler em seu Blog – 

Na próxima quarta-feira (20/02) o ministro Celso de Mello concluirá o longo – e já considerado histórico – voto sobre a necessária criminalização da homofobia e transfobia. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) nas primeiras 70 páginas de seu voto – ao todo, segundo anunciou, são 130 – já deixou claro a impossibilidade de o Judiciário legislar. Porém, prometeu proposta de forma a levar o Legislativo a elaborar a legislação necessária e, com isso, atender ao anseio da comunidade LGBT para, como disse, lhe garantir os direitos previstos na Constituição:

“(…) se impõe proclamar agora, mais do que nunca, que ninguém, absolutamente ninguém pode ser privado de direitos, nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por orientação sexual ou ainda em razão da sua identidade de gênero. Isso significa que também os homossexuais e também os integrantes da comunidade LGBT têm direito de receber a igual proteção das leis, a igual proteção do sistema político jurídico instituído pela Constituição da República”.

Celso de Mello, ao defender o respeito à Constituição por todos os Poderes pode ter criado saia justa para seus pares do plenário. (Foto: Ascom/STF)

A parte já revelada do voto é um verdadeiro libelo na defesa da Constituição Cidadã de 1988. Do que leu deixou clara a necessidade do respeito à Carta Magna por todos. Inclusive o Legislativo, no tocante à sua obrigação de criar os textos legais ali previstos, tais como a lei criminalizando os atentados contra a população LGBT.




Embora o voto gire em torno da omissão legislativa, ele – como não poderia deixar de ser – ao fazer a defesa da Constituição deve ser entendido como algo mais amplo. Basta verificar a passagem em que Celso de Mello demonstra as formas como os Poderes Públicos atropelam a Carta Magna:

A situação de inconstitucionalidade, portanto, pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público que age, ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo os preceitos e princípios que nelas se acham consignados. Essa conduta estatal que importa em um “facere” gera a inconstitucionalidade por ação. Portanto, o Poder Público faz aquilo que a Constituição não permite.

Pode ocorrer, no entanto, como sucede na espécie em exame, que o Poder Público deixe de adotar as medidas legislativas que sejam necessárias para tornar efetivos, operantes e exequíveis os próprios preceitos da Constituição. Em tal situação o Estado abstém-se de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs. Desse “non facere”, ou desse “non prestare”, resulta a inconstitucionalidade por omissão que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público“.

Com tal explicação, o decano sinalizou no meio jurídico que poderá fazer renascer o Mandado de Injunção, abandonado por aquela corte desde a Constituinte até a gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Na explicação da professora de Direito da PUC-Rio, Gisele Cittadino, tal mandado foi criado pelo constituinte de 1988, com os melhores objetivos: “obrigar os demais Poderes a suprirem suas omissões. Tem a ver com o dever de ação por parte do Estado, e pode recair sobre o Legislativo ou Executivo

Por ele, o Judiciário pode mandar o Executivo construir uma escola onde não tem ou determinar ao Legislativo criar um tipo penal (crime de homofobia) não existente. Caminho pelo qual, tudo indica, parece que Celso de Mello trilhará.

O mandado de injunção – continua a professora da PUC-Rio – estava em desuso porque o STF, nos governos pós 88, entendia que isso era ingerência indevida nos outros poderes. Violaria o princípio da separação dos poderes. Um momento em que o Supremo optava por certa autocontenção. Com a chegada dos governos populares, a autocontenção foi para o brejo. Celso de Mello sinalizou que poderá trazer de volta a beleza do mandado de injunção”.

Já com a frase “A situação de inconstitucionalidade, portanto, pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público que age, ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo os preceitos e princípios que nelas se acham consignados” o decano pode estar sinalizando como será – a depender do seu entendimento – o comportamento do STF diante do desrespeito à Constituição.

Não apenas no Legislativo – que se encaixaria nesse caso criando leis inconstitucionais. Mas em especial no Executivo e no próprio Judiciário. A começar pelo Supremo como na decisão em que ele, e alguns de seus pares, foram vozes vencidas ao defenderem a Constituição.

Se no Legislativo o atual desrespeito à Constituição vem do “não fazer”, nos outros dois Poderes o atropelo à Carta Magna tem ocorrido – ou vem sendo prometido e anunciado – com o fazer em desacordo a ela.

Pegue-se, como exemplo, a defesa intransigente dos bolsonaristas em torno do famigerado projeto de Escola Sem Partido. Algo que o Supremo já considerou inconstitucional, uma vez que atinge o direito à liberdade de cátedra dos professores. Ainda assim, políticos, políticos que acabam de se eleger continuam a defendê-lo, como se constitucional fosse.

Ou mesmo o projeto com o qual Sérgio Moro entende que combaterá a criminalidade. Nele, propõe mudança da legislação ordinária para sustentar a inconstitucional prisão após condenação em segunda instância. Tentará atropelar a chamada presunção de inocência prevista na Constituição a reboque do que seis ministros do STF fizeram.

Como se comportarão os demais ministros do STF no debate sobre a presunção de inocência? Foto: Ascom/STF

Ai está, porém, a pedra no sapato dos ministros do STF. Diante das posições límpidas e claras do decano da Corte na defesa intransigente dos direitos previstos na Constituição, como ficarão seus colegas quando confrontados novamente com a discussão em torno da presunção de inocência?

Pelo que reza o inciso LVII do artigo 5º da Carta Magna “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Apesar de tal enunciado límpido e claro, o Supremo, por apertada maioria, decidiu, em outubro de 2016, atropelando entendimento anterior, que a condenação em segunda instância – e não apenas como o trânsito em julgado – autoriza o cumprimento de uma pena. Lotou cadeias e presídios com condenados provisórios, sem sentença transitada em julgado.

Justo a Corte à qual cabe fazer cumprir a Carta Constitucional – tal como defendeu seu decano ao demonstrar plausível a cobrança ao Legislativo de leis criminalizando a Homofobia e a Transfobia – em interpretações enviesadas atropelou uma das cláusulas pétreas da Constituição, como estipulado no seu artigo 60, § 4º.

Ou seja, os “direitos e garantias individuais” previstos no artigo 5º, – juntamente com a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; e a separação dos Poderes; – são, por decisão dos constituintes de 1988, previsões constitucionais imexíveis. Só podem ser revistos em nova Constituinte.

O Supremo fez ainda letra morta o artigo 283 do Código de Processo: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Dobrou-se à pressão de setores da sociedade – inclusive, e principalmente, da chamada grande mídia – com interesse específico naquele momento: punir políticos.

A recusa do STF em voltar a discutir a presunção de inocência deixou a forte impressão de afastar Lula do processo eleitoral (Foto Marcelo Auler)

Na verdade, estavam de olho na sentença, na época ainda não exarada, porém tida como certas, com que o então juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, brindaria o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Apesar de a apertada maioria de outubro de 2016 já ter se modificada, em especial por uma já anunciada mudança de posicionamento do ministro Gilmar Mendes, um novo debate sobre o assunto naquela Corte, embora bastante cobrado, não aconteceu.

As explicações superficiais de sua ex-presidente, ministra Cármen Lúcia, bem como de seu sucessor, Dias Toffoli, não conseguiram afastar a forte impressão de que o objetivo sempre foi um só: evitar a liberdade de Lula, mantendo-o longe da campanha eleitoral de 2018.

Agora o Supremo – a prevalecer o anunciado por Toffoli – se colocará diante de um dilema. Ao mesmo tempo em que cobrará do Legislativo o cumprimento do que rege a Carta Magna no tocante à sua obrigação de legislar sobre os crimes que aterrorizam e vitimam a comunidade LGBT, terá que enfrentar, em abril, novamente a discussão sobre a presunção de inocência.

Terão os ministro coragem de fazer valer o que os Constituintes de 1988, capitaneados por Ulisses Guimarães, decidiram e escreveram de forma clara e cristalina? Ou continuarão cedendo à dita pressão popular, que por detrás de uma suposta bandeira de combate à impunidade, na verdade deseja evitar a liberdade do ex-presidente Lula?

Decidirão respeitar a Constituinte como ela foi escrita, ou buscarão um atalho, já anunciado por Dias Toffoli, de que a presunção de inocência vale até o julgamento de recurso pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)? Muitos atualmente apostam que quando o Supremo for discutir a questão novamente o STJ já terá corrido a confirmar a condenação de Lula, criando-se novo empecilho à sua liberdade. A ver.

No momento em que forem colocados diante deste dilema, convém aos ministros do STF lembrarem a forma corajosa e honesta com que o decano Celso de Mello abriu seu voto na quinta-feira. Previu que sofrerá censuras e críticas por setores da sociedade. Notadamente os mais extremistas das denominações evangélicas que, como lembrou no voto, impediram no Congresso o avanço do projeto de lei que regulamentaria os crimes contra a comunidade LGBT. Como preâmbulo, registrou:

Eu sei senhor presidente que em razão deste voto, do voto que vou proferir, e também da minha conhecida posição, em defesa dos direitos das minorias, que compõem os denominados grupos vulneráveis, serei – inevitavelmente – incluído no índex, mantido pelos cultores da intolerância, cujas mentes sombrias, que rejeitam o pensamento crítico, que repudiam o direito ao dissenso, que ignoram o sentido democrático da alteridade e do pluralismo de ideias, que se apresentam como corifeus e epígonos de sectárias doutrinas fundamentalistas, desconhecem a importância do convívio harmonioso e respeitoso entre visões de mundo antagônicas“.

Mesmo sabendo disso tudo, mostrou-se coerente na defesa dos direitos criados pelo constituinte de 1988. Fique o exemplo para seus pares no egrégio plenário.

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