O meu amigo Mará

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva do campo de futebol com Maradona até o sinal fechado com Mará e Panga.

Como todas as crônicas do Cícero César, este craque das palavras, me leva a algum lugar. Este texto me levou a Eduardo Galeano, que afirmou: “Os anos se passaram e, com o tempo, acabei assumindo minha identidade: não passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplico: uma linda jogada, pelo amor de Deus! E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre”.




Sou mendigo, como Galeano, a procura de uma linda jogada que se até num num sinal fechado, protagonizada por um Mará e um Panga. (Washington Araújo).

“Eu nunca iria me confundir: era o Mará Maradona que passava por mim. Eu o reconheci na hora, apesar de tantos anos passados. Ele, não. Talvez porque, além do boné, havia o tabuleiro de doces que eu equilibrava sobre as pernas. Ainda tentei chamá-lo, mas ele, arisco, me deixou para trás.


Na verdade, pela estatura e as pernas arcadas, o Mará lembrava mais o Popó, o que jogou no Flamengo quando o Zico foi para a Itália. Mas na linguagem do futebol, um ponta de pernas tortas é Garrincha; um menino negro com a 10, Pelé. De vez em quando, ainda hoje a gente topa com um Romário. E surgem esses todos outros aí que vocês idolatram com estatísticas.


Os campinhos de várzea da região e de além da região não se esquecem tão facilmente. Para todos os efeitos, para todos os beques ingleses e não ingleses, ele era o Mará Maradona, admirado e invejado por muitos desde a Copa de 1986. E aquele passe que ele deu para o Caniggia, aquele que jogava com um elástico na cabeça para imitar o original portenho, parecia ou não parecia replay do original?


Enquanto jogamos juntos, copiei do Mará o hábito esquisito de esperar até o início do jogo para amarrar as chuteiras. Tanto eu quanto ele nos aquecíamos com as chuteiras folgadas e meiões arreados nas canelas, ao balanço de uma música que não entendíamos muito bem. Mas, sabe como é, simpatia não dá para mudar: “Lararalaralá! Hei, Hei Hei!”.


O pessoal não perdoou jamais minha cara ossuda e comprida de cavalo. Me apelidaram de Pangaré. Eu até tinha explosão, lento não era, mas não adianta, apelido quando pega é para sempre. Você acha que o pessoal ainda hoje me chama de seu Panga por quê?


O Mará fazia embaixadas com laranja, limão, até ovo. Era impressionante, eu só acreditava porque testemunhei. Quando a barra apertou, a gente ficou de fazer umas exibições nos sinais de trânsito e tal, tudo combinado. Ele fazia embaixadas; eu passava o chapéu. Ele achou uma boa ideia levar alguém com a perna enfaixada para o sinal, tipo um elemento dramático. O motorista poderia até não gostar do Maradona, mas se compadeceria de um menino pobre e aleijado.


Se eu vi o Mará levar uma bola por debaixo das pernas de um Romário? Vi, sim. Acontece, faz parte do jogo, quem nunca levou um drible acapachante não sabe direito o que é futebol.

Em 1994, Mará e Panga, isto é, nós dois, já não éramos tão jovens assim. Quando o autêntico Maradona foi pego no anti-doping, Mará me disse cerrando os dentes que não iria ver mais jogo de Copa porra nenhuma. Eu até que tentei fechar com ele, mas, infelizmente, não consegui. Nos separamos. Festejei feito um louco a conquista do Brasil. Só não segui o carro de bombeiros com a delegação porque eu estava de muletas.


Não me pergunte como, mas o fato é que um dia chegou até a mim uma série de bugingangas. Entre elas, um boné com os autógrafos de diversos jogadores do Brasil de 1994 – não tinha o do Romário, infelizmente. Entre elas, uma máquina digital com fotos do ocorrido, da euforia da moçada pelas ruas da cidade. Eu vi diversas vezes e acreditei. É Tetra!


Tudo bem, até aí. Eu seria um atravessador. Quem vai desconfiar de um aleijado com apelido de Pangaré? Só que um belo dia entraram lá em casa uns barrabravas, reviraram tudo até encontrar o produto do suposto roubo. Não adianta dizer o óbvio, que eu não tinha sido. Por vezes, é melhor calar. E esperar o soco na boca e o gosto de sangue.


Mas dar um tiro na perna de um aleijado de muletas foi uma grande covardia.
Eu encontrei o Mará na Ramatis, fazendo tratamento espiritual. Sendo ele supersticioso como era, não era difícil acreditar que ele buscava se livrar dos maus espíritos que o rondavam. E eu acompanhava a minha mãe, que buscava alívio para o crônico remautismo. Para o meu caso, só tinha uma saída: se conformar, aceitar os desígnios divinos.


Vimos que nós dois estávamos longe das nossas melhores formas. Mas eu gostei de vê-lo, gostei mesmo. Os cabelos dele estavam grisalhos ou a grisalhar. Eu já não tinha tanta intimidade assim com ele para sugerir que talvez fosse a hora de alguém dizer que mesmo o “D10” estava por usar cabelos mais curtos.


Esta foi a última vez que o vi assim não-aluado. Não acreditei nada nas histórias que me contaram, que ele dizia ouvir vozes e tal, que o batiam sem bola e que ele não conseguia revidar.


Eu acho que na pressa o meu amigo Mará não me reconheceu. Eu queria lhe dizer que o velho Panga, um dos melhores centroavantes com que ele jogou, muito melhor que o Caniggia, estava ali, ainda que sem parte da perna, entrevado numa cadeira de rodas. Mas não deu.


A gente, quem sabe, poderia ter trocado passes usando apenas a cabeça. Eu acho que ainda consigo. Eu tenho certeza que ele também.”

Obs.: Maradona completou, em 30 de outubro últimno, 63 anos. Sim, completou, no presente, pois Maradona é eterno.

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