Quadrilátero da Liberdade

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Por Marco Aurélio Vasconcellos, cantor, compositor e poeta

Já não tinha idéia de quanto tempo se passara desde a prisão até aquele momento. As repetidas sessões de tortura tinham-no feito perder a noção das horas. A princípio, tentara contar os dias. Em vão. As dores eram tantas que contar o tempo já nem era mais importante.  Ademais, tudo ficara mais difícil agora, com a falta de luz direta naquele cubículo. De importante, mesmo, só a pequena abertura quadrada, lá no alto, com grossas barras de ferro. Por ali vinha ar fresco e a acalentada esperança de, através dela, alcançar o mundo exterior.




Mas como? Sequer imaginava o que havia do outro lado. E, além de tudo, aquelas barras…  Como serrá-las, meu Deus?! Afora isso, supunha que a abertura não dava para a rua, porque por ela lhe vinha o matraquear incessante de uma máquina de escrever, alguns gritos e, sobretudo, muitos gemidos. Vezes sem conta ficara de pescoço doendo de tanto olhar para cima, aspirando o ar indispensável e ouvindo aqueles sons horripilantes.

De que lhe valera o idealismo de lutar contra a opressão e por melhores condições de vida para as minorias oprimidas?  Logo ele, que nem sequer tinha vínculos partidários com as esquerdas e tampouco era destemido. Ao contrário, sempre fora medroso. Sempre evitara tumultos e fugia de uma briga, por mais simples que fosse. Até mesmo das verbais. Era apenas um simpatizante do movimento que visava a desestabilizar o regime militar. Nada mais do que isso.

Quando se deu conta, levado por um amigo, estava participando de reuniões secretas. A mulher, de certa forma, o estimulara, porque, na verdade, não escondia o desejo de também estar presente. Mas tinha os dois filhos pequenos… 

 Logo, recebeu um codinome: “Vaivém”. Na certa, por estar relacionado com a atividade de levar e trazer recados de uma célula para outra. Apenas isso. E até gostara que tivesse sido assim, porque não havia um comprometimento maior, não se expunha tanto.

Mas um dia, uma convocação mais envolvente: o seqüestro do adido cultural americano. Tudo com o objetivo de conseguirem fundos para a guerrilha. De leva e traz fora promovido a motorista. A princípio, tentou esquivar-se da empreitada. Mas foi inútil. Os dirigentes da célula eram rígidos e não admitiam contestações. Percebendo que estava meio apavorado, lhe disseram que o serviço era moleza. Bastaria ficar esperando na direção, com o motor ligado, numa rua secundária. O grupo viria com o americano num outro veículo para, então, trocarem de carro. Tudo muito rápido e preciso. Depois, era só aguardarem o dinheiro gordo.                                                                                                      

Mas tudo acabou dando errado. Os moradores da ruela perceberam algo estranho e deram o alarme. Logo, a perseguição. Suava na direção do Simca Chambord, em loucas correrias pela cidade, com derrapagens e travadas violentas. E os companheiros gritando para que corresse mais…  Não via a hora de acabar aquele inferno. Por fim, uma curva mal feita, a batida e a prisão. Chegou a sentir-se aliviado.

Viu-se, depois, completamente nu, numa cela imunda.  Levou porradas sem conta com um cassetete de pau, quebraram-lhe dois dedos da mão. O agressor, de olhos vermelhos e batendo sem parar, parecia estar à beira de um orgasmo. Chegou a ficar surpreso consigo mesmo, porque, apesar de tudo isso, não entregou ninguém. Mas, depois, vieram o pau-de-arara e os choques elétricos: primeiro nas pálpebras e nas orelhas, depois nos mamilos, no escroto e no ânus. E o que é pior: ameaças de que iriam matar a mulher e os filhos.

Não agüentou mais: confessou até o que não sabia. Nem de perto imaginava que o calvário não tinha terminado. Após assinar a confissão, colocaram-no numa cela coletiva do Presídio Central. Viu-se no meio de bandidos, metade homens, metade feras. Mais tarde, cada vez que se lembrava, a cabeça parecia explodir. Logo na primeira noite, suprema humilhação, foi violentado no banheiro por quatro animais. Um por um. A dor física era um grão de areia comparada com o abalo moral. Bastou uma semana no Presídio para se sentir menor do que um verme.

 A seguir, veio a ilha. Ali, até foi bom. De vez em quando permitiam um pouco de sol, trocas de bilhetes com a mulher, submetidos, é claro, ao crivo da carceragem. Alguns companheiros da célula desarticulada também lá estavam. Decepcionou-se com eles. Quando a hora era de se unirem, via-os investirem-se na mesma hierarquia de antes. Continuava sendo, aos olhos dos mais graduados, um simples leva e traz. E mais: alguns deles se recusavam a dividir as frutas e guloseimas que os familiares mandavam.       

Agora, estava ali, irremediavelmente só, naquele cubículo do DOI-CODI.  De companhia, apenas o vaso sanitário com a descarga emperrada, uma velha cama “Patente” sem lençóis e travesseiros (por precaução, diziam os algozes) e aquela abertura quadrada, com grossas barras de ferro, lá em cima. 

Pensou na mulher. Passado tanto tempo, ardia por ela. Lembrou-se dos seios empinados, das deliciosas curvas das ancas e da tênue protuberância do ventre. Suspirou fundo, estremeceu.  Como seria bom passear por aquelas amadas veredas. De repente, uma dor de cabeça atroz, em ondas, que lhe turvaram a visão. Esfregou os olhos. Tudo em vão. Continuou enxergando mal. Não era a primeira vez… Sabia que ia demorar a passar.

O desejo pela mulher se desvaneceu de imediato. No corpo e no pensamento. Um sentimento oposto se instalou: o da mais completa impotência. Depois de tudo aquilo, jamais conseguiria encarar a mulher de novo. Imaginou-se tentando, tentando, tentando, sem jamais chegar ao clímax. A vida teria ainda algum sentido? Mas, quem sabe, havia uma esperança: a pequena abertura quadrada lá em cima… Tinha de encontrar um jeito. Estava ali a libertação.

O tempo passou a se arrastar ainda mais. Já nem tinha certeza de quando era dia ou noite. A máquina de escrever martelando lá do outro lado. Estava deitado de bruços, insone, com os braços esticados para fora da cama, quando a mão roçou em algo áspero numa das travessas da cabeceira. Tateou com atenção. Uma chapinha de metal!  Com toda certeza, a placa da marca Patente. Enfiou as unhas entre o metal e a madeira, forcejando. Um pequeno deslocamento. Repetiu a operação vezes sem conta. As unhas quebraram, o sangue brotava dos dedos. Os progressos eram desproporcionais à insistência.

Por fim, sabe lá depois de quantas horas, conseguiu retirar a chapinha inteira. Raspou-a no chão, em movimentos lentos para não despertar atenção, até conseguir o desejado fio. Testou-a no colchão de brim e deu resultado: cortava mal, mas cortava. Abriu-o de ponta a ponta e retirou toda a palha.  Em seguida, desdobrou o tecido, estendeu-o no piso e enrolou-o. Certificando-se da resistência da tira, deu um nó duplo numa das extremidades e esperou que tudo silenciasse. A máquina de escrever parou.

Alguns minutos se passaram. Não ouvia vozes nem gemidos. Encostou a cama na parede, bem embaixo da abertura gradeada, subiu na travessa mais alta e se pôs a lançar o nó contra as barras de ferro. Já estava quase desistindo, quando, finalmente, o nó duplo ficou preso numa das barras. Ergueu-se na ponta dos pés sobre a guarda da cama e, com muito esforço, conseguiu pinçar o nó com os dedos, puxando-o para baixo. Quase gargalhou de satisfação.

Deu um nó duplo na outra ponta, atou fortemente as duas extremidades e puxou de um lado para que aquela nosarada fosse lá pra cima. Uma onda de felicidade inundou-o. Desde o princípio, ao chegar naquele cubículo, tivera a certeza de que a saída estava naquele quadradinho gradeado.

Teve, então, a nítida sensação de que a abertura que sempre lhe proporcionara ar fresco, agora também lhe dava luz, muita luz. A luz da liberdade. Firmou os pés na cabeceira, passou uma laçada no pescoço e voou.

Imagem: Elifas Andreato

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