Um conto de vida: Barcos de papel

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Por Vidomar Silva Filho, compartilhado do Site Construir Resistência – 

“Meu querido Renzo”. Não, não dava pra começar assim. O Renzo agora era da outra. Riscou. “Querido Renzo”. Não, também não servia isso de querido. Ele também não a chamava mais meine Schatz como nas cartas do tempo do namoro. E se o bilhete caísse nas mãos da Anna, a alemoa ainda podia vir tirar satisfações. Riscou e começou novamente: “Renzo, preciso muito conversar contigo”. Enquanto pensava em como prosseguir, Alice a interrompeu.

– Mãe, o que tu tá fazendo?




– Não é tu, Alice. Como é que se diz?

– A senhora. Que que a senhora tá fazendo?

– Eu tô escrevendo um bilhete pro teu pai.

– Quando que ele volta pra casa? O balanço tá quebrado.

– O Klaus conserta quando voltar da escola. Agora vai brincar só um pouquinho, tá? A mãe tá ocupada.

– Me dá um papel desse aí? Eu quero fazer um barquinho que nem o Klaus me ensinou.

Alzira arrancou uma das poucas folhas que restavam no caderno e deu-a à filha, que se sentou no chão e começou a dobrar o papel ao meio, cuidadosamente.

Ela ia tateando no bilhete. Não tinha como dizer o indizível. Não podia contar pro Renzo o quanto vinha sofrendo na mão das alemoas da igreja. As pestes se esqueceram das dez cucas que ela assou para a última quermesse.

Se esqueceram do leitão que o Renzo dava todo ano pra festa de Natal. O Renzo não, ela! O Renzo doava, mas era ela quem criava os bichos. Depois do desmame, dava a lavagem, o milho, a batata-doce. Separava o leitão e deixava na ceva um mês antes, pra melhorar a carne. Depois ainda precisava segurar o bicho e aguentar os berros desesperados enquanto o Renzo sangrava o coitado. Daí ainda abria, tirava as tripas, os miúdos, lavava, escaldava pra tirar os pelos, salgava. Deixava pronto pro seu Raulino assar e botar na roleta. Havia mais de dez anos a mesma coisa.

Quando descobriram que ela sabia bordado, pediram pra bordar a estola do padre, a toalha do altar, os trajes do grupo de dança alemã. Viviam pedindo-lhe coisas.

Tudo, tudo isso foi esquecido. Depois que o Renzo saiu de casa, todo o desprezo, todo o ódio disfarçado afinal se mostrava. As alemoas pararam de fingir que gostavam dela e começaram a negar-lhe a fala, a ignorá-la na missa, a mudar de lado na rua quando a encontravam.

As piores eram as Três Marias, a Prim, a Wessler e a Gesser. Uma era mulher do prefeito, outra do juiz, outra do dono da serraria. Eram elas que controlavam tudo na igreja, desde a organização das missas e da catequese até o caixa.

Um dia, no confessionário, Alzira reclamou ao padre Ernesto sobre a maneira como a vinham tratando. Não pensava, claro, que ele fosse chamar as Três Marias e dar‑lhes uma bronca, mas esperava ao menos um pouco de apoio dele. Ouviu do padre que ali era uma comunidade pequena e tradicional, que as pessoas tinham os seus costumes, os seus valores, que ela precisava tentar compreender e perdoar, que seguisse o exemplo de Cristo… Ela arrependeu-se de ter tocado no assunto.

Talvez as outras mulheres fossem melhores para ela se não tivessem medo de ficar mal com as Três Marias. Mas Alzira, de alguma forma, já antecipava isso. Sabia que era uma intrusa ali e que a máscara de falsidade das alemãs um dia viria abaixo. Ela morava ali havia quinze anos, mas sentia que nunca fora aceita pelas mulheres. Que tolice ter deixado que Renzo a trouxesse para Santa Úrsula!

Dezesseis anos antes, Renzo servia ao Exército em Florianópolis e tornou-se amigo de Paulo, seu irmão, que o convidou a conhecer a família. Logo que o viu, Alzira ficou atraída por aquele moço louro e tímido, que carregava nos rr ao falar e que ficava vermelho por qualquer coisa.

Ele também pareceu gostar dela à primeira vista, ainda que mal a olhasse nos olhos. As visitas frequentes foram trazendo intimidade, e não tardou que ele a pedisse em namoro e logo em noivado. Foi quando Renzo a trouxe a Santa Úrsula para conhecer seus pais e irmãos. Ela tinha a pele clara e os olhos verdes, herdados da mãe. Apesar dos seus cabelos escuros e cacheados, os Klein não poderiam supor que o pai dela não era branco.

No dia do casamento, Alzira pôde ler a surpresa nos olhos dos Klein, dos Lohn, dos Deschamps, dos Schmitz, daquela alemoada toda, quando ela percorreu a nave até o altar de braços com aquele mulato alto e forte, muito elegante no uniforme de gala da polícia. Em lugar pequeno, todos sabem de tudo. Os Klein e toda a vizinhança já sabiam que a mãe da noiva do Renzo era costureira e que o pai era sargento. Não era o uniforme bonito ou seu vestido simples, claro, a causar surpresa e todos aqueles cochichos em alemão.

Na festa do casamento, ela viu como os Klein pouco falaram com seus parentes. Mas ela bem sabia como esconder a mágoa e erguer a cabeça. Durante os dois anos em que moraram numa casinha no quintal dos sogros, ela tornou-se o braço direito de dona Catarina.

Aprendeu a fazer pão, a cuidar dos animais, a capinar os canteiros de hortaliças, a matar e limpar os frangos, a plantar e colher a batata e o aipim. Era pau pra toda obra. Não poderia dizer que a sogra se tornara amiga dela, mas tratava-a com respeito e cordialidade e não se metia na vida dela e do marido.

Juntando as economias dela e de Renzo com o dinheiro que o pai deu a ela como presente de casamento, compraram um pequeno sítio, construíram uma casinha simples de madeira e começaram a trabalhar. Quando Klaus nasceu, no ano seguinte, eles já produziam porcos, frangos, ovos, aipim, batata, verduras e colhiam palmito na área em que o mato ainda não dera lugar à lavoura. Era uma lida de sol a sol, e Alzira entregava‑se àquilo de corpo e alma.

Quando Klaus tinha quatro anos, nasceu Alice. A menina cresceu saudável e bonita, ainda que sempre magrinha. Como o irmão, também tinha olhos claros e os cabelos encaracolados. Mas a pele jambo, os lábios grossos e o nariz mais largo deixavam clara a ascendência negra.

Nos primeiros anos de casamento, Renzo mostrou-se um trabalhador tão incansável e organizado como ela. Pouco depois que nasceu Alice, já tinham juntado o suficiente para comprar o sítio vizinho, que estava quase abandonado. Contratavam alguma mão de obra avulsa para limpar a terra e na hora da colheita, e o restante do trabalho era feito por eles mesmos. A vida era dura, mas tinham a satisfação de ver seu esforço render bons frutos.

Quando Alice tinha três ou quatro anos, Renzo começou a juntar-se a amigos para pescar e caçar nos fins de semana. Dizia que precisava de alguma diversão pra distrair um pouco a cabeça. Na mesma época também começou a ir uma ou duas vezes na semana à venda para jogar dominó. Saía no fim do dia e voltava tarde, cheirando a cerveja. No dia seguinte, era ela quem acordava antes do nascer do sol para ordenhar a vaca.

Alzira passou a reclamar que ele estava relaxando no serviço e deixando muitas coisas nas costas dela. Renzo retrucava que ela estava exagerando, que ele trabalhava feito um boi no arado e precisava de alguma diversão de vez em quando. Jamais levantava a voz ou a mão contra ela, mas foi deixando de ser um marido amoroso. Ela notava com tristeza que ele também já não era carinhoso com os filhos e que muito raramente brincava com eles agora.

Por essa época, Egon, um primo de Renzo, morreu afogado no rio. Anna, a viúva, viu-se às voltas com a venda herdada do pai, o engenho de farinha, as plantações e um pouco de gado no pasto. Renzo compadeceu-se dela e comprometeu-se a ajudá‑la um pouco enquanto os gêmeos de dezesseis anos iam tomando ciência dos serviços e ela negociava uns matos de onde Egon tirava madeira e que ela e os filhos não teriam como administrar. A própria Alzira insistira para que o marido ajudasse a prima em dificuldades um dia na semana.

Como fora tola! O Renzo voltava para casa elogiando a comida da Anna, a educação dos três meninos da Anna, a organização da venda da Anna… Devia ter desconfiado desde o início. A Anna era uma mulher carnuda, bonita, alta. E ainda era divertida, faladeira, despachada.

Não demorou para que viessem comentar com ela – pra notícia ruim nunca falta mensageiro – que o Renzo só ficava na venda, do lado de dentro do balcão, junto com a Anna. Os gêmeos é que cuidavam do gado, do engenho e das plantações. Os rapazes tinham tino e logo estavam tratando com empregados e compradores tão bem como o falecido pai. Não precisavam do Renzo pra lhes ensinar o que fazer.

Já passados quatro meses da morte de Egon e com a venda dos matos resolvida, Renzo ainda continuava indo ajudar Anna, às vezes duas vezes na semana. Um dia, enquanto tiravam a casca de uns palmitos, Alzira perguntou-lhe de súbito:

– Escuta, Renzo, a Anna e esses guris já não podem se virar sozinhos?

Ele hesitou antes de responder:

– Os meninos ainda tão aprendendo os serviços, Alzira. Eu preciso ir lá de vez quando pra ensinar.

– Tá, mas tu ensinas os guris ficando na venda, é isso?

Renzo avermelhou como quando eram namorados. Ela pensou que ele fosse negar, ou perguntar como ela sabia. Mas ele só disse:

– Tu só ficas pensando coisa ruim, mulher. Anda, vamos terminar isso logo, porque não demora a chover.

Renzo passou a procurá-la cada vez menos como esposa. Ele, que sempre esperava que os filhos dormissem para a convidar para a cama, começou a deitar-se antes. Quando ela ia para o quarto, ele já estava dormindo. Ou fingia dormir.

Uma noite esperou-a acordado e pediu que ela fizesse uma imundície. Ela não conseguia crer que ele tivesse falado aquilo. Aos sussurros, para não acordar os filhos, disse‑lhe que ele não tinha tirado ela das ruas. E com que boca ela ia beijar os filhos depois? Deixou-o sozinho na cama e foi deitar-se no chão, no quarto dos filhos.

Renzo não deixou de ajudar a prima, e as idas à casa dela se amiudaram. Foi relaxando cada vez mais no cuidado com o próprio sítio. Numa das idas à casa de Anna, não voltou para dormir em casa. Pretextou que o mau tempo o retivera lá. Na semana seguinte, mesmo com bom tempo, tornou a pernoitar na casa da outra.

Alzira decidiu dar um basta naquilo. Um dia, aproveitando que as crianças brincavam no córrego, pediu a Renzo que se sentassem para uma conversa.

– Escuta, Renzo, eu quero que tu pare de ir lá na Anna. Lá tu já ajudasse o que podias. Agora tu tens que cuidar é do que é nosso.

– Eu não posso deixar de ir lá, mulher. Ela ainda tá precisando de mim.

– Ela que case de novo, Renzo. Ainda é nova. A tua casa é aqui. É aqui que tá a tua mulher e os teus filhos. Tu precisas escolher. E é hoje. Tu vais continuar indo lá?

– Eu não posso deixar de ajudar ela, porque…

Ela não o deixou terminar.

– Pois então tu podes ir e ficar por lá mesmo. Eu me viro com o Klaus por aqui.

Ela sabia que estava apostando alto. Blefou e perdeu.

– Bom, Alzira, se tu queres assim…

Ele levantou-se da mesa, foi para o quarto. Ela podia ouvir o ruído das portas do guarda-roupas e das gavetas da cômoda abrindo e fechando. Em alguns minutos, Renzo passou por ela com uma trouxa nas mãos e só disse:

– Não era preciso nada disso, mulher.

Nos primeiros dias, Alzira chorava ao deitar-se e rezava para que Deus tivesse piedade e botasse juízo na cabeça do marido. Mas logo decidiu que precisava tocar a vida. Com Renzo cada vez mais ausente, ela e Klaus já tinham aprendido a dar conta de todo o serviço.

Então, a ida definitiva do marido para a casa da amásia não trouxera grandes mudanças na rotina de trabalho. Ela era valente para o serviço e Klaus, com doze anos, já tinha botado corpo e trabalhava mais e melhor do que muito homem.

E como era bom para a irmã! No fim da tarde, quando voltava da escola, ia para o quintal brincar com ela. Faziam boizinhos com sabugos de milho, bonecos de barro que deixavam secar ao sol, alçapões para pegar passarinhos. Ultimamente começara a ensinar‑lhe a fazer barcos de papel. Ele fazia os barquinhos, que soltava com a irmã no córrego ao lado da casa e iam acompanhando até que chegassem ao rio, uns cem metros abaixo. Daí ficavam no barranco olhando até que os barquinhos sumissem de vista.

Alice tinha completado sete anos em janeiro e já podia estar frequentado a escola. Mas Alzira ainda hesitava em matriculá‑la, quase um mês depois do início das aulas. No último dia de aula do ano anterior, pouco depois que Renzo foi embora de casa, Klaus voltou da escola com a mão machucada. Ela quis saber o que fora aquilo, mas o menino não queria contar. Depois de alguma insistência, Klaus se abriu:

– Eu dei um soco na boca do João Prim na saída da escola, porque ele me xingou.

– Do quê que ele te xingou?

O menino baixou a cabeça e começou a chorar.

– Fala, Klaus. A mãe não tá braba contigo.

– Ele me chamou de Hurensohn e de Schwartz.

Alzira ficou possessa. Então uma mulher separada virava puta na boca daquela gente? Mas o Klaus não parecia mulato, e os meninos nunca tinham incomodado ele antes com isso. Essa coisa do João xingar o Klaus de negro não era à toa. Era a desgraçada da Maria Prim que andava falando mal dela pro filho!

Quando voltaram as aulas, ela preocupou-se com o que faria caso tornassem a xingar o filho. Mas o soco no João Prim certamente tinha servido de lição e exemplo, porque nem ele nem os outros tornaram a mexer com o Klaus. Ficou claro que o menino sabia se cuidar muito bem. O tamanho avantajado, os braços fortes e a coragem o punham a salvo dos malvados.

Pareceu a Alzira que o filho tinha herdado o temperamento da bisavó. A mãe do seu pai tinha sido escrava até os vinte anos. Com a abolição, recusou-se a ficar um dia a mais sequer na casa dos antigos donos. Foi parar na rua. Passou fome e frio. Acabou juntando os trapos com um marinheiro italiano beberrão que a explorava e ainda batia nela. Um dia ela quebrou-lhe um pote de barro na cara e o ameaçou com um facão.

O italiano sumiu no mundo e ela acabou de criar e educar o filho sozinha. O Klaus tinha a mesma coragem e força da vó Custódia. Sabia muito bem impor respeito.

Mas ela pensava que com a Alice seria muito diferente. Era menina, magrinha e claramente mulata. Ia penar no meio da criançada.

Alzira voltou a concentrar-se no bilhete. Precisava terminá-lo, porque o seu Max não tardaria a chegar. O velho Max era um alemão simpático, que vinha numa caminhonete comida de ferrugem duas vezes na semana, para negociar. Comprava dela lenha, palmito, mandioca, batata, verduras. Ele pouco falava português e ela pouco sabia de alemão, mas sempre davam um jeito de se entender. Alzira contava com ele para levar o bilhete para Renzo.

Ela continuou a buscar argumentos para convencer o marido a voltar. Precisava dele para se fazer respeitar pela alemoada.

“A Alice e o Klaus estão sentindo a tua falta. Eles vivem perguntando por ti”. Riscou. Primeiro porque era mentira. O Klaus jamais tocava no nome do pai. E agora estava com raiva do Renzo depois que o vira brincando de bola com o caçula da Anna.

A Alice só se lembrava do pai quando algum brinquedo quebrava. Mas agora o Klaus é que vinha cuidando de consertar os brinquedos e fazer novos. Segundo porque o Renzo não se importaria. Tinha virado pai dos filhos do Egon e esquecido dos próprios filhos.

– Olha mãe. Eu consegui fazer o chapéu do soldado.

Alice mostrava orgulhosa o papel dobrado em forma de um chapeuzinho cônico com dois bicos.

“A vaca do Vânio quebrou a cerca e comeu uns repolhos”. Riscou. Sabia que o Renzo não ia se preocupar com meia dúzia de pés de repolho. Que fossem dez dúzias. Ele não viria em seu socorro, porque o Vânio Schmitz era companheiro de dominó e caçadas.

– Mãe, olha. Agora eu fiz o balão.

Alice tinha dobrado o chapéu de soldado de tal forma que virara um quadrado.

“O Branquinho está doente. O bicho não come quase nada e agora está lá deitado no meio do pasto.” Riscou. O cavalo não estava doente coisa nenhuma e comia feito um cavalo. E o Renzo não se incomodaria. Se não se ligava nem pros filhos, ia se importar com um cavalo velho?

– Mãe, olha só. Agora eu fiz o chapéu menorzinho. Tá quase pronto. Agora só falta fazer o balãozinho pequeno e puxar as pontinhas pra ficar o barco.

Alice tinha virado duas pontas do papel e conseguido novamente um chapéu de dois bicos, agora menor.

“O telhado do curral está todo podre e periga cair por cima da Duquesa”. Isso talvez o trouxesse, porque o Renzo realmente gostava da vaca. Era mansa e dava muito leite. Mas ela, no fundo, sabia que o Renzo não viria. Não poderia oferecer a ele nada que a Anna não tivesse por lá. E a alemoa talvez fizesse nele a imundície a que ela se negara.

– Ó, mãe, terminei.

A menina tinha nas mãos um barquinho de papel simétrico, firme, com as dobras bem frisadas. Ela de repente se deu conta de que a filha tinha mais habilidade com as mãos do que ela pensava. Era boa de cabeça a danadinha!

– Vamo botar na água, mãe?

Ela estava cheia daquela porcaria de bilhete. Levantou-se num pulo da cadeira.

– Vamos, Alice. Quero ver se esse teu barquinho é valente mesmo.

– Espera só um pouquinho. Deixa eu escrever o meu nome nele.

Alzira entregou-lhe a caneta. A menina achatou o barquinho e desenhou na lateral, letra a letra, vagarosamente, ALICE. Depois abriu-o de novo e foi ajeitando para que o barco ficasse bem certinho para boiar.

Foram até o córrego. Alice acocorou-se e depôs o barquinho gentilmente na água. Largou-o e ele foi descendo em direção ao rio. No caminho, um ramo caído travou‑lhe a passagem e o barquinho ia adernando. A menina correu, tirou o ramo e o barquinho seguiu viagem. Chegou ao rio e foi deslizando pelas águas barrentas. Alzira tomou a mão de Alice e as duas ficaram olhando até que o barquinho desapareceu na curva do rio.

Ela se maravilhou de como a habilidade da filha tinha transformado uma folha de papel naquele barquinho que navegava orgulhoso rio abaixo. Aonde chegaria?

Acariciando a cabecinha da menina, apurou olhos e ouvidos. Escutou o trinado de pássaros no mato, o zumbido distante de uma cigarra, viu as libélulas tocando a água, uma borboleta vadia, os raios do sol dourando o alto dos morros do outro lado do rio. Quanta vida, meu Deus! Subitamente, sentiu um alívio imenso e uma alegria tranquila. Convidou a filha para subirem em direção à casa.

– Vem, vamos lá fazer outro Alice. Tu ensinas pra mãe como que faz?

Entraram em casa e ela entregou à filha o bilhete incompleto, cheio de rabiscos.

– Não é o bilhete pro pai?

– Não precisa mais, Alice. Vamos fazer um barco bem bonito com ele e vamos botar o nome de nós duas.

Enquanto observavam o segundo barquinho ir rio abaixo, Alzira deu um longo suspiro e decidiu de vez: não ia se rebaixar. O Renzo, a Anna, as Três Marias, o padre Ernesto, aquela gentarada cretina, que fossem todos à merda. A vó Custódia nasceu escrava e conseguiu tomar as rédeas da vida. Ela e os filhos tinham nascido livres. Ninguém lhes ia botar canga.

Agachou-se na frente da filha, segurou-lhe as mãozinhas, olhou-a firme nos olhos e disse:

– Amanhã tu vais pra escola, Alice.

Vidomar Silva Filho é doutor em Linguística pela UFSC. Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de  Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC)

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