A saúde é uma mulher negra

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Maioria entre profissionais de enfermagem no país com mais vítimas de covid-19 entre a categoria, elas são também as mais ativas e mais vulneráveis

Por Gyovanna Altino,. compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Enfermeira em ação de testagem para o coronavírus no Rio de Janeiro: estudo do Observatória da Enfermagem aponta que, dos 220 profissionais do setor mortos por covid-19 no Brasil, 66% são mulheres (Foto: Florian Plaucheur/AFP)

Mulheres negras são as mais ativas e as mais vulneráveis entre os agentes de saúde no país em que mais morrem enfermeiros no mundo desde o início da pandemia de covid-19, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e o Conselho Internacional de Enfermeiros. Figura essencial no atendimento a pacientes de Covid-19, o profissional de enfermagem atua em todas as etapas de tratamento e é responsável por mais de 90% dos processos de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). 

Até 30 de junho, morreram no Brasil 220 profissionais de enfermagem, sendo 145 mulheres (66%) e 75 homens (34%). Em 22.114 casos reportados, 18.780 (84,9%) são de mulheres. A maior parte (9.382) foi de profissionais entre 31 a 40 anos, e a dos óbitos (60) entre 41 e 50 anos. Devido à falta de testes, apenas 8.662 foram confirmados. Os dados estão no Observatório da Enfermagem, organizado a partir de notificações das redes de saúde, que não registram cor ou raça. O observatório busca, por conta própria, agregar estas informações, antecipadas ao #Colabora: de 148 vítimas já identificadas, 90 são negros (65 pardos e 25 pretos) e 58 são brancos.

O levantamento preliminar segue o Perfil da Enfermagem no Brasil. A maioria dos profissionais é mulher (84,6%) e se identifica como preta ou parda (54%), segundo pesquisa conduzida desde 2015 pelo Cofen e pela Fiocruz. Trabalham entre 30 e 40 horas por semana em hospitais, clínicas ou postos de saúde, muitas vezes em jornada dupla ou tripla de trabalho, porque têm vários empregos, além de fazer o trabalho doméstico em casa e cuidar dos filhos. A sobrecarga física e mental dessas trabalhadoras, mesmo sutil, pode ser considerada violência de gênero.

A enfermeira Paloma Salazar, do do Centro de Terapia Intensiva no Hospital Universitário da UFJF: trabalho extra também com a filha pequena sem aulas (Foto: Arquivo Pessoal)
A enfermeira Paloma Salazar, do do Centro de Terapia Intensiva no Hospital Universitário da UFJF: trabalho extra também com a filha pequena sem aulas (Foto: Arquivo Pessoal)

Integrante da equipe do Centro de Terapia Intensiva no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, reorganizado para atender apenas casos confirmados ou suspeitos, Paloma Rodrigues Salazar, 40 anos, enfermeira há 16, esteve afastada do hospital por suspeita de Covid, mas o teste deu negativo e ela voltou a cumprir 36 horas semanais no período noturno. Sem parentes na cidade mineira, Paloma deixa a filha de 7 anos com uma babá para fazer os plantões. Costumava dormir enquanto a menina estava na escola. Agora, se desdobra durante o dia, cuidando sozinha da filha e da casa. “Esta nova rotina é mais cansativa, quase não consigo descansar quando chego do plantão, mas ao mesmo tempo é ótimo cuidar da minha filha. Eu tenho que dar atenção a ela o tempo todo que estou em casa. Ela tem tarefas online da escola, e só pode contar comigo. E tem que me acompanhar em tudo, porque não tenho com quem deixar’’, explica.

A enfermeira Angélica Belo trabalha nos hospitais da UFRJ e da Uerj: medo de contaminar a família (Foto: Arquivo Pessoal)
A enfermeira Angélica Belo trabalha nos hospitais da UFRJ e da Uerj: medo de contaminar a família (Foto: Arquivo Pessoal)

Angélica Belo, 36 anos, enfermeira há oito anos, trabalha no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, desde 2018, e no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Uerj, há três meses: “Se não trabalhasse em dois lugares, não daria para pagar as contas”. Vários colegas já contraíram o novo coronavírus, se recuperaram e voltaram a trabalhar. “Tiro a roupa e o sapato no quintal e vou direto tomar banho, mesmo já tendo tomado no trabalho. Trabalho com medo, e tenho todo cuidado do mundo para não me contaminar”, conta. Ela mora com o marido, o filho e a mãe, que faz parte do grupo de risco: “Tenho muito medo de contaminar eles. Não posso abraçar minha mãe, mas beijo a testa e passo álcool depois. O meu filho tem 7 aninhos, não tem como. Eu falo que não pode, mas quando vejo ele já se pendurou no meu pescoço’’.

Um dos momentos mais marcantes para a enfermeira foi a morte de um paciente recém-casado, sem comorbidades. “É muito triste ver a falta de despedida e de visitas da família. Nesses dias, chego em casa mais sensível, abraçando mais e dando muito mais valor à vida’’, conta Angélica.

Clique para acompanhar a cobertura completa do #Colabora sobre a pandemia do coronavírus

Enfermeira há mais de 30 anos, Noêmi Machado, de 53, desabafa: “Nossa cabeça está toda atrapalhada, o emocional está abalado. Focamos no trabalho e na nossa missão de cuidar, mas também somos humanos e temos medo. O falecimento de colegas de trabalho e conhecidos mexe muito com a gente”., comenta Noêmi, uma das mais experientes da equipe da Clínica da Família Maurício Silva, em Benfica, Zona Norte do Rio. “A maioria é mãe de criança pequena; muitas têm pouca experiência, mas muita vontade de aprender e ajudar”. 

Vamos precisar tratar da desigualdade de gênero e racial, assim como da covid-19, porque o racismo também é uma doençaA pandemia agrava uma situação de estresse e condições precárias de trabalho que não são novas. No relatório “O estado da enfermagem no mundo 2020’’, da Organização Mundial de Saúde (OMS), feito antes da pandemia do novo coronavírus para o Ano Mundial da Enfermagem, o Brasil ficou com 2 pontos em uma escala 1 a 6 na categoria das regulações e condições de trabalho, desempenho similar aos da Índia e do Camboja. O indicador avalia questões como segurança no trabalho, horas de trabalho, proteção social, contratos temporários e plano de carreira.

pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil traz dados que confirmam e ilustram essa realidade. Quase metade dos profissionais de enfermagem recebe de 1 a 3 salários mínimos; 52% já sofreram discriminação relacionada a gênero; e 21% já sofreram discriminação racial no ambiente de trabalho. A questão de gênero aparece na equipe da enfermeira Noêmi: quase todas são mulheres: “Tem homens, mas são médicos”, repara. 

“As oportunidades são muito desiguais”, resume a ativista Luana Génot, 31 anos, fundadora do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) e filha única da enfermeira Ana Cristina de Souza, 61 anos. Luana lembra que as mulheres negras já são que mais enfrentam o desemprego, a desigualdade salarial e a violência doméstica no Brasil: “Muita gente acha que o racismo ficou no passado, mas enquanto essas consequências perdurarem, isso tem que ser discutido. Vamos precisar tratar da desigualdade de gênero e racial, assim como da covid-19, porque o racismo também é uma doença’’.

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