Burunga, o encarnado

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Mais uma partida da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, que nos senta numa arquibancada para vermos um emocionante jogo de futebol.

Apita o árbitro….




“Não é que recentemente um certo Bucco* pôs os pés num estádio? Fazia anos que isso não ocorria. Desgostoso da vida, mas especialmente desgostoso com os rumos do esporte bretão, Bucco tinha até então cumprindo sua promessa de não voltar a ver futebol, questão de honra. É certo que de quando em quando ele espiava um jogo na tevê, que não era de ferro. Mas na grande maioria das vezes o que viu serviu apenas para confirmar seu desencanto. Isso não é futebol, ele dizia para si mesmo, em muxoxos um tanto incompreensíveis.


Só que naquela ensolarada tarde de domingo, ele foi ao estádio dos Cappelli, o regionalmente conhecido Capelão, a pedidos de FJ, um amigo das antigas que tinha embarcado na sinistra aventura de tirar o “Capelinha” da terceira divisão.

FJ, mesmo que em boníssima forma, com a saúde de vaca holandesa, já era entrado em anos. Por mais habilidoso que fosse, ele estava velho demais para jogar profissionalmente. Mas fazer o quê, lá foi ele como quem é convocado para uma grande batalha.


FJ queria que o filho do Bucco entrasse em campo, junto com toda a meninada. Só que o turrão do filho do Bucco não quis ir. Paciência, paciência. Para não perder a viagem, o Bucco foi apenas com a filha, que, pelo que constava, não era lá muito chegada a futebol.


Subiram a velha rampa de mãos dadas, com o solzinho da tarde na cabeça. Mas não é que ela entrou no clima? Pediu o ingresso para guardar de recordação no seu scrapbook; perguntou entusiasmada por aquilo e por aquilo outro, onde é que se fazia gol, onde se fazia xixi, se dava para comer pizza depois do jogo, qual era o time do FJ, quem era aquele sujeito de azul com apito na boca etc.

O pai foi tentando explicar o que podia com a paciência que lhe restava, torcendo feito louco para que a menina não lhe perguntasse o que era linha de impedimento.

Foi engraçado vê-la cantar a plenos pulmões o hino extraoficial do Capelinha:
(…)
O sangue ferve
O sangue ferve
Debaixo da minha pele
Força, Cappelli
Força, Cappelli
A bandeira toda encarnada…

Ela aprendeu direitinho. Quanto ao jogo, a bem da verdade, apesar da empolgação da menina em sua estréia em campos de futebol, a partida estava mais morna que arroz de forno de domingo. Mais que isso, estava modorrenta. Se fosse possível, Bucco daria um cochilo antes do término do primeiro tempo.

Porém, a tardinha, que caía de leve feito uma pluma, lhe reservava surpresas. FJ, que até então não estava jogando nada, errando passes simples e na tomada de decisão, levou uma bronca daquelas de ninguém mais que a mãe dele. Bronca de ficar com os lábios roxos.


Sim, a mãe dele tinha ido ao estádio e também estava decepcionada com o futebol do pimpolho. Foi ela que o chamou à razão, dizendo que não queria passar vergonha em um misto de impropérios e palavras em ioruba a julgar pela acentuação.


“Joga bola, Burunga”, foi o que ela entre tantas coisas incompreensíveis disse? Provavelmente, sim.
Deu pena ver o FJ ali na meia-cancha encurvado feito menino que é pego matando passarinho. Que espinafrada, meu Deus. Mas como era para o bem dele, o estádio apoiou lhe rendendo palmas.

Dali em dia diante, nada de FJ. Em vez disso, começaram em uníssono a chamar pelo nome de Burunga, antigo artilheiro encarnado, isto é, dos Cappelli, isto é, agora ao que tudo indicava praticamente reencarnado.


O segundo tempo foi uma pintura. Não deu para o Barcelona de Belford Roxo. Os Cappelli venceram por três a zero, dois gols de Burunga. Mas como descrever com palavras aquele cruzamento dele que resultou em uma cabeçada digna de um Washington, de um Jardel, de não sei quem? Nem se tivesse videoteipe, meus amigos. Aquilo merecia um Puskas!


Ao fim da partida, com o alívio da vitória rolou até volta olímpica. E depois do jogo, na entrada do vestuário, Bucco e a filha se aboletaram para pedir um autógrafo do Buru, que assim assinou no verso do ingresso.

O craque estava mais que radiante, mesmo com aquele discurso que não se joga sozinho, que a vitória foi do time e não apenas dele. Todo mundo entendeu: se tratava de mera formalidade, modéstia de quem joga muito, de quem tem nervos de aço, mas que não sabe falar melhor com os pés do que com a boca.

Tudo estava se encaminhado para o final, isto é, para acabar em pizza conforme combinado, quando a mãe do Burunga, quero dizer, do Buru, quero dizer, do FJ, chegou toda esbaforida para dizer entre chacoalhadas na cabeça e impropérios em ioruba que o filho precisava passar mais na casa dela. Que ela sabia um milagroso remédio caseiro para curar a dor no joelho que tanto o incomodava. “De artrite eu entendo”, foi o que ela disse, e estavam combinados.

E que ele viesse, foi isso que o Bucco ouviu, com o amigo para consertar o telhado, dar um jeito na antena e na geladeira, que a bichinha estava rateando – Ah, e que o ralo da área estava entupido.


Depois da pizza, voltaram para a casa o Bucco e a filhinha, dois encarnados. Ela acabou dormindo no sofá depois de ouvir uma centena de vezes no celular o hino do Encarnado, o campeão dos campeões, um time de família. E a menina tinha mais um tesouro para seu livro de recordações.


Para não ficar para trás nem ser jogado para escanteio, o filho do Bucco disse que da próxima vez que tivesse jogo ele iria, que não perderia por nada um acontecimento daqueles, que no fundo era mais Encarnado que Manchester City. Bucco sorriu, sabendo que o filho dizia aquilo tudo só para lhe agradar.

Antes de dormir ao lado da esposa absolutamente em paz consigo, havia ainda uma coisa a ser feita. Ele tratou de preparar a caixa de ferramentas. Afinal, domingo foi dia de ver os Encarnados suarem em campo; na segunda, seria dia de suar no trabalho.

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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