Canto na fresta

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Por Luiz Antonio Simas, no Facebook – 

Andei lendo aqui ou ali que o desfile da Mangueira finalmente trouxe para a avenida, de forma pioneira, os personagens esquecidos pela “História oficial”. Calma, gente. Devagar com o andor, sob risco de varrer para debaixo do tapete toda a trajetória das escolas de samba ao longo de décadas.

Adorei o enredo e o desfile da Mangueira. Amei a concepção estética do desfile, dando tratamento épico aos “novos heróis” e caricaturando os “heróis consagrados nos retratos”, e reforçando o papel público das escolas de samba no debate nacional. Nesse momento obscuro em que estamos metidos, o enredo da Manga ganha ainda mais relevância, com um samba que transbordou o carnaval, além de trazer a novidade de pensar o conflito entre os “velhos” e os “novos” heróis como síntese do enredo e seu perfil profundamente contemporâneo, o que é forte e inovador. Mas é justo lembrar que essa função pedagógica das escolas de samba vem de longe. Ainda bem. E só é possível a exuberância criativa de Leandro Vieira porque houve Pamplona, Rosa, Luiz Fernando Reis, Arlindo, Maria Augusta, e outras mais.




Em 2017 escrevi sobre isso na minha coluna no site da Rádio Arquibancada, quando a Renascer de Jacarepaguá desfilou com um belo enredo louvando João Cândido e Carolina Maria de Jesus, O texto se chama “Canto na fresta”. Reproduzo o que escrevi à época:

“Historicamente, as escolas de samba tiveram, sobretudo a partir da década de 1960, um papel de vanguarda pedagógica no Brasil: apresentar personagens, temas, episódios, à margem da História Oficial, aquela baseada em relatos aparentemente neutros de grandes feitos, efemérides e heróis do panteão.

As mesmas escolas de samba, que nas décadas de 1940 e 1950, se limitavam a falar dos galardões, medalhas e brasões da pátria, assumiram um papel pioneiro a partir de certo momento. Um papel que os colégios não desempenhavam, os meios de comunicação ignoravam e os livros didáticos raramente enfrentavam.

Quando o Salgueiro de Fernando Pamplona apresentou, inspirado em um livro censurado de Edison Carneiro, o seminal Zâmbi dos Palmares (Quilombo), em 1960, Zumbi era um personagem que não aparecia nas salas de aula brasileiras. O herói era Domingos Jorge Velho, o bandeirante que trucidou o povo quilombola. Chica da Silva e Chico Rei vieram no mesmo barco, arrebentando em vermelho e branco, através da avenida, a cerca que não os fazia chegar ao ensino formal.

Eu nunca tinha escutado falar de micro-história, história a contrapelo ou história do cotidiano no colégio (só na faculdade travei contato com essas linhas de estudos), mas já tinha visto a cabrocha Lili desfilar sua formosura na feira livre da Caprichosos de Pilares e me emocionado com o cotidiano do perrengue de uma viagem no trem da Central, ramal Japeri, cantado pela Em Cima da Hora. Hoje sei, dentro da minha profissão, que ali estava o drama humano que me interessa, como historiador, abordar e entender com paixão e método.

Foi escutando samba-enredo que eu, ainda menino, soube da Guerra de Canudos, da peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba, da literatura de Lima Barreto, do drama da seca do Nordeste, da vida fabulosa do pai de santo Hilário de Ojuobá. Foi escola de samba que me falou de Teresa de Benguela e do Quilombo do Quariterê, da Confederação dos Índios Tamoios, das lendas dos orixás, dos mitos de origem dos Carajás, de Dom Obá II, Rei da África e das esquinas do Rio de Janeiro, e de tanta coisa do tipo.

Instituições complexas, em constante diálogo com a conjuntura, as escolas de samba não se enquadram em modelos prontos. Cantaram a história oficial, se renderam aos patrocínios mais esdrúxulos, louvaram o regime militar, contestaram o regime militar, e retrataram a vida de celebridades duvidosas de ocasião.

Ao mesmo tempo, contaram as historias dos que foram apagados por certas versões da História, deram o protagonismo aos Zumbis, Conselheiros, Aimberês e Teresas de Benguela. Louvaram Luiz Gonzaga, os poetas do cordel, os caboclos de umbanda, os orixás, as iabás, as mães de santo e do samba.

Uma simples pergunta que deixo no ar me parece ressaltar a importância do enredo da Renascer de Jacarepaguá: quantas brasileiras e brasileiros conhecem a epopeia de João Candido e a escrita preta, cotidiana, contundente e desafiadora de Carolina Maria de Jesus?

Encaradas por muitos como meras empresas do setor turístico, as escolas de samba podem e devem ser muito mais que isso. Elas podem ser também poderosas instituições culturais de vanguarda; terreiros em que o canto celebrado em tambor escuta a voz potente de brado de vida daqueles que, muitas vezes, cantaram na fresta a chance de um Brasil mais generoso.”

O link para a coluna de 2017: http://www.radioarquibancada.com.br/site/canto-na-fresta/

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