Guarani-kaiowá: “estrangeiros em nosso próprio país”

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Por Cassiano Martines Bovo, publicado em Justificando – 

“Tive a sensação de estar em um lugar onde os direitos humanos não existem” (Salil Shetty, à época Secretário-Geral da Anistia Internacional, ao visitar uma comunidade guarani-kaiowá[2]; afirmação, aliás, que pode se aplicar ao país de maneira generalizada).

A BR-163 é uma estrada longitudinal que liga o Rio Grande do Sul ao Pará, atravessando celeiros do agronegócio. Nessa rodovia, desde os 1990, se observa indígenas da etnia guarani-kaiowá precariamente habitando suas beiradas, sobretudo na região de Dourados, Mato Grosso do Sul. As tendas atreladas a estruturas de madeira, mesas e sofás ao relento, expõem uma das muitas facetas de uma violência, violações de direitos e descaso que acompanham esse povo desde quando passaram a “atrapalhar” os ciclos de expansão do agronegócio, que se vangloria dos dólares gerados para balança comercial do Brasil, neste caso, à custa de vidas e sofrimento. A busca dos guarani-kaiowá pelas suas terras ancestrais, de forma incrivelmente pacífica, mas obstinada, imprime em seus corpos e almas o legado de crueldades sofrido pelos indígenas em geral no país.

“Não se passa um mês sem que a Anistia Internacional receba novas denúncias de violações contra as comunidades Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Ao longo da última década, nossa organização registrou assassinatos, ameaças de morte contra líderes indígenas, trabalho escravo, desnutrição, remoções violentas e a destruição de plantações e propriedades. Com processos judiciais emperrados, mais de mil famílias vivem à margem das rodovias. Têm sido ameaçadas por seguranças contratados para impedi-las de tentar reocupar suas terras, e sofrem com problemas de saúde por causa da vida em abrigos temporários, sem assistência médica. Além disso, muitos foram mortos e feridos em acidentes de trânsito”[3].




A afirmação acima é de 2012, porém, nada mudou, senão para pior e podemos adicionar: o sofrimento com a falta de acesso à água e, quando disponível, o seu envenenamento, assim como em suas lavouras, praticado por fazendeiros que se dizem donos das terras. Resultado: elevadas taxas de mortalidade, desnutrição infantil e de suicídio[4], sobretudo entre os jovens, o alcoolismo pela falta de perspectivas, a pobreza extrema, dentre outros.

Guaranis-kaiowá, espalhados no sul do MS são constantemente acossados e sob risco iminente de morte pelas ações de capangas, pistoleiros, seguranças, vigilantes, seja qual o nome que se queira dar, a mando de fazendeiros e empresários, que derrubam, queimam, destroem casas, plantações, locais sagrados etc., espancam, matam, ferem e sequestram, inclusive crianças, que, desde pequenas, já viram muitos dos seus morrerem. Damiana Cavanha, cacique da comunidade Apika’y e vivendo à beira da BR-163, já teve nove parentes assassinados. De acordo com o relatório do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), de 2003 a 2016, 444 indígenas foram assassinados no MS, o que corresponde a 44% do total do país, no período[5].

“Todos soltavam rojões, atiravam de revólver e soltavam bombas, com umas armas na direção das nossas barracas. Só se ouvia crianças e mulheres chorando de desespero […]. Enquanto isso, pegaram o cacique Marcos Verón na outra barraca e começaram a espancar e dar chutes nele até [ele] cair no chão. Depois de caído no chão, ainda cada um deles dava chutes no cacique. Depois [que o] cacique estava agonizando no chão pela boca, eu gritava para eles deixarem de bater nele por que ele é velho e aposentado […] Enquanto isso, vi o meu pai recebendo a última coronhada na cabeça e no rosto. Até não se mexer mais […]”[6].

Como se chegou a essa situação?

Na segunda metade do século XIX os guarani-kaiowá sofreram o avanço da cultura da erva-mate sobre suas terras e experimentaram as agruras do convívio com os brancos: sucessivas expropriações, trabalho escravo ou disfarçado de assalariado; primeiras tentativas de aculturação. A partir dos 1940, sob o eufemismo de uma colonização desenvolvimentista, foram experimentando as violências, mortes e sofrimentos das “marchas para o Oeste”, baseadas na agropecuária, sendo as mais intensas a da soja a partir dos 1970, altamente mecanizada, e a da cana de açúcar nos 1980.

O que lhes aconteceu beira à acumulação primitiva narrada em O Capital, por Karl Marx, em que os donos originários da terra são expropriados, destituindo-os dos seus meios de produção, não só para que outros tenham a terra, mas também, sobretudo, para que se tornem mão de obra explorável para geração da mais-valia. O trabalhador assalariado só pode surgir, como nos ensinou o autor, se aqueles que perdem os seus meios de produção não têm outra alternativa de sobrevivência se não a venda do que lhes resta: sua força de trabalho. Os guarani-kaiowá foram forçados a se tornar mão-de-obra barata num sistema que nada tem a ver com seu modo de vida tradicional. Até hoje parcela significativa deles resiste.

A “solução” governamental, aplicada a partir dos 1950, foi sua transferência compulsória para oito reservas criadas em território sul mato-grossense, consideradas pela Organização das Nações Unidas como espaços de confinamento, como a de Dourados, que abrigou em torno de 16.000 deles em cerca de três mil hectares, considerada a maior área de confinamento indígena do mundo[7].

Para esse povo as terras ancestrais têm valor simbólico inestimável, é lá que estão enterrados seus antepassados, precisam estar junto deles para praticar plenamente sua cultura. No final dos 1990, resolvem retomar suas terras, saga chamada de retomada, começam a sair das reservas em busca da tekoha (“lugar onde se é”). Saem das reservas e começam a voltar para suas terras ancestrais, de preferência o mais próximo possível dos cemitérios onde estão os seus antepassados.

Formam-se comunidades onde os guarani-kaiowá vivem de forma precária e em conflito, acossados fisicamente por aqueles que se dizem os verdadeiros donos das terras, e quando não têm outra alternativa, ficam onde conseguem, como em beiras de estradas. Isso dá a errônea (quando não colocada manipulatoriamente) ideia de que se trata de um povo nômade, como dizem alguns. Nada mais falso. Nomadismo é diferente de processos contínuos de expulsão. São eles os invasores? Ou o contrário? Algumas comunidades: Apika´y, Laranjeira Ñanderu, Takuara, Y’poí, Ita’y Ka’aguyrusu, Kurusú Ambá, Jatayvary, Ñande Ru Marangatu, Passo Piraju, Tey’ikue, Amambaipeguá, Teyi Jusu-Caarapó, Kunumi Vera, Guapoy, Guyra Kambiý, Guaiviry, Yvy katu, Cerro Marangatu, Jaguapiré etc.

Legalmente os guarani-kaiowá seriam beneficiados pelo artigo 231 da Constituição de 1988, que proíbe as remoções (salvo em casos especiais) e obriga a demarcação, que é vista pelos indígenas do país como determinante na luta pelo seu direito à terra, a base legal para a regularização e o registro. Estando eles no coração dos interesses dos caciques do agronegócio, as perspectivas não são as melhores. E o Brasil ainda é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que assegura os direitos dos povos indígenas e da Declaração da ONU sobre o Direito dos Povos Indígenas.

Em 2007 o país foi protagonista no processo de criação desse documento, com belos discursos e promessas, destacando a importância dos indígenas na sociedade, se gabando por ter uma Constituição que garante direitos aos índios e existir um órgão (FUNAI – Fundação Nacional do Índio) que supostamente atua em prol deles, embora geralmente sem recursos. A legislação no marco internacional exige a participação dos indígenas nas discussões e processos que os atingem, ouvindo-os, consultando-os e isso expõe a gritante distância entre a lei e a situação concreta, num país de conquistas de papel.

Em geral, os Termos de Ajustamento de Conduta, primeiro passo para as demarcações, quando relativas aos guarani-kaiowá, dificilmente são concluídos; comumente, no meio do caminho, algum procedimento jurídico (liminares, suspensões etc.) interrompe o processo em prol de governantes estaduais e municipais, fazendeiros, empresários e congressistas da chamada bancada ruralista, mesmo com as denúncias, pressões, alertas e ações de vasta gama de atores, tais como a ONU, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ONGs, CIMI, APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a própria FUNAI, dentre outros. Em março de 2013, por ex., 88 organizações assinaram o documento Manifesto Pela Vida – Solidariedade e Defesa dos Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul.

A ONU lançou um documentário (Guarani e Kaiowá: pelo direito de viver no Tekoha) e um relatório (2009); a Anistia Internacional publicou outros ao longo do tempo (quando não específicos aos guarani-kaiowá, ao menos com capítulos e seções a respeito), além de ações urgentes, notas públicas; e esse povo foi um dos casos da Campanha Escreva por Direitos de 2013 (mais especificamente a comunidade Apika’y), além da conexão com a Campanha em curso chamada Coragem, relativa aos defensores dos direitos humanos.

Em meio a tudo isso, mortos e feridos foram se sucedendo. Marçal de Souza, conhecido como Marçal Tupã-i, guarani nhandeva que ficou famoso ao discursar para o Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil (1980), disse:

“Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas. Esta é a verdadeira história. Nunca foi contada essa verdadeira história do nosso povo. Eu deixo aqui o meu apelo de 200 mil indígenas que habitam e lutam pela sua sobrevivência neste país tão grande e tão pequeno para nós…”[8]

“Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes, assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão”[9].

Em 1983 Marçal é assassinado a tiros, seus algozes julgados e absolvidos dez anos depois. Enquanto o mundo olha perplexo o que acontece com os guarani-kaiowá, muitos outros tombaram e restaram feridos, inclusive crianças.

Os anos de 2015 e 2016 foram de acirramento de tensões nas comunidades guarani-kaiowá, violências, despejos, calúnias e mentiras se espalharam, somando-se às investidas legislativas. Em outubro de 2015 a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) 215 é ressuscitada na forma de um substitutivo, propondo medidas que atingem o processo de demarcação: passar para o Congresso Nacional as decisões sobre as demarcações e proibindo sua ampliação, o que, na prática, tira do Executivo (e fundamentalmente da FUNAI) as ações nessa área, transferindo-as para os interesses da bancada ruralista e do agronegócio no Legislativo. Além disso, a PEC 215 cria o chamado marco temporal, que elimina discussões sobre demarcação de terras indígenas que estão em áreas tomadas depois da promulgação da Constituição, medida parece que feita para atacar efetivamente os guarani-kaiowá, uma vez que eles foram expulsos de suas terras ancestrais e iniciaram as retomadas depois da Carta.

Fiquemos então com as palavras de Vincent Carelli, diretor do belíssimo documentário Martírio, sobre os guarani-kaiowá:

“Antes da partida, um grupo sai da casa de reza entoando um canto dos céus para abençoar nossa viagem. Tive que conter a emoção para firmar a câmera… mas com um quilômetro de estrada não aguentei, parei o carro, desci e chorei convulsivamente, chorei de emoção diante da beleza dos seus mantras, do carinho com que tratam dos seus aliados, da sua alegria de viver para além da penúria material em que vivem, do desprezo e do ódio que os cercam, da violência que sofrem. Daquele dia em diante, toda vez que deixo uma aldeia, e não foram poucas, sou tomado pela mesma comoção”.

Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais e mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e já lecionou, de 1986 aos dias de hoje, em 17 Instituições de Ensino Superior e em vários cursos (presenciais e EAD), disciplinas na área de Economia e Sociologia, com produção nessas áreas. Atua voluntariamente como Organizador Nacional Estratégico da Anistia Internacional Brasil e no Grupo de Ativismo São Paulo da Anistia Internacional.

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