Por que a Veja é tão imperativa e categórica?

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Por Thiago Venco, publicado no Jornal GGN –

Uma análise científica e filosófica da discordância com a revista  mais vendida do Brasil

“Achar que está certo” é fácil, discordar com propriedade é difícil. Muito além do “achismo”, do “opininionismo”: O Labirinto do Desacordo oferece mais um fio de Ariadne para você não se perder nessa popular disputa – “Devemos concordar ou discordar dos artigos da revista mais vendida do Brasil, em especial aqueles que se posicionam de modo imperativo, peremptório, afirmativo, categórico, definitivo – e até mesmo usando um tom de ‘indiscutível’?”




Devo confiar,  em geral, nas proposições de verdade  feitas pelos autores e editores que publicam textos na revista Veja’? Como posso manter uma postura crítica perante à postura ‘sempre inabalável’ da revista?

A “ciência” também revê suas crenças… mas você crê que “a ciência” – 100% dos cientistas – concordam com essa proposição?
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Antes de entrar na Teoria do Desacordo, vamos contextualizar a discussão numa situação familiar:

“Digamos que você foi no almoço de Natal de 2014 na casa da sua avó; a revista Veja da semana estava displicentemente jogada na mesa de centro da sala. Seu tio-avô fez um comentário sobre a matéria de capa (seja lá qual tenha sido, não importa!), dando o gancho para que outras pessoas expusessem sua opinião:”

Seu primo Saturnino comentou:

“Eu entendo o contexto da matéria, eu até mesmo tenho estudado o mesmo assunto na universidade – inclusive tenho gasto bastante tempo me dedicando ao assunto – MAS tenho um ponto de vista diferente sobre o assunto, e tenho razões para discordar do artigo – aliás, acredito que os objetivos de quem escreveu o texto sejam diferentes dos meus”

– Seu outro primo, Geminiano, comentou:

“Ainda que eu nem tenha lido essa matéria da Veja, e ainda que eu possa pressupor muito bem tudo o que você venha a me dizer sobre seus estudos, eu também tenho uma posição muito clara sobre este tema, muito mais sólida do que você imagina na verdade. Independente do que você pense, eu tenho uma posição inabalável sobre este assunto. E a julgar pela chamada, eu provavelmente vou concordar com a revista

Saiba TUDO sobre um novo remédio: muitos pesquisadores, médicos e farmacêuticos, concordaram que essa capacidade de ensinar TUDO sobre um tema controverso, para leigos, PARECE MILAGRE

TODA E QUALQUER SEMELHANÇA COM SEU NATAL É MERA COINCIDÊNCIA.

Uma vez que estabelecemos que você e seus primos Saturnino e Geminiano tem garantida a liberdade de avaliar como quiserem a “veracidade” (ou não) da proposta de Veja, com qual dos dois valeria a pena comprometer sua crença – abstratamente falando?

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HIPÓTESE 1: Seus primos podem ter OBJETIVOS diferentes ao atestar (ou negar) a veracidade do artigo da Veja.

(Vamos partir de um princípio “justo”, equânime, igualitário; seus primos, no caso, teriam um “background” equivalente, uma preparação equânime para a discussão, um bom conhecimento de causa. Ou seja, AMBOS afirmaram suas posições antagônicas fundamentados em um conhecimento “suficientemente bons”.)

Nesta hipótese, seu primo Geminiano pode ter um interesse “material” em validar a veracidade da matéria de Veja. Digamos que ele é um comerciante interessado em vender o remédio que a revista apresenta, em termos de sua “utilidade”.

O outro primo, Saturnino, talvez antagonize com este objetivo: ele pode ser um acadêmico que estuda os efeitos colaterais deletérios do remédio, efeitos dos quais o artigo da revista Veja discorda que sejam relevantes, significativos para que se deixe de consumi-lo.

O primo Saturnino teria o objetivo de FIXAR UMA CRENÇA SOCIAL ANTAGÔNICA AO CONSUMO DO HIPOTÉTICO PRODUTO – digamos, um medicamento sem aprovação na ANVISA para o uso em debate.

Portanto, se você deseja ter uma aproximação racional da abordagem de um ou de outro “primo”, ou seja, de uma ou outra interpretação de veracidade do artigo de Veja, digamos que seria “útil” colocar sob suspeição qualquer um dos dois que:

– Que desejasse impor sem argumentos uma crença relativa ao artigo – ou produto

– Que estivesse abertamente envolvido em um tipo de “doutrina” ou “proselitismo” ou “marketing” relacionado ao produto ou artigo.

Seria igualmente útil, ainda na perspectiva de compreender os objetivos para melhor avaliar se devemos manter ou suspender nossa crença na proposição de verdade:

– Qual a dimensão social do desacordo com o artigo de Veja, ou seja: com quais grupos de interesse, com quais grupos de investigação do problema eu estaria entrando em desacordo?

– Portanto, com quais interesses meu desacordo entraria em conflito?

Entender o OBJETIVO é entender o contexto, a perspectiva do outro

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HIPÓTESE 2: um deles não tem condições iguais e suficientes para avaliar adequadamente a proposição de verdade.

Caso um dos primos careça de:

a) Informação, dados ou evidências
b) Habilidade, formação acadêmica ou interesse no assunto
c) Tempo, condições de pesquisa ou reflexão

Isso se configura numa situação de desacordo ILEGÍTIMA – em oposição ao desacordo “legítimo”, quando ambos possuem condições “suficientemente boas” para o debate.

Será que todos os leitores de Veja sabem o suficiente sobre a diplomacia brasileira para poderem julgar adequadamente se concordam ou discordam do “apagão”?
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HIPÓTESE 3: um dos primos apenas mantém uma postura obsessiva, “inabalável”, de negação/afirmação da crença.

Parecer um sujeito decidido e de opinião forte é uma estratégia para (tentar) obter um “ganho social“.

Em algumas situações, a demonstração de dúvida pode ser encarada como “fraqueza”; nestes casos, a pessoa pondera que, mais importante do que “cooperar por uma aproximação conjunta da verdade”, é mais lucrativo que ele simplesmente sustente sua posição de “dominante da verdade” perante seu círculo social.

Por exemplo:

É vantajoso para a revista Veja demonstrar a seus leitores que ela escolhe sempre os melhores especialistas para fundamentar sua matéria, de modo que ela “entregue um valor” de “poupar o esforço” do leitor em julgar se deve ou não concordar com o “expert” – ou seja: caro leitor, pode manter uma confiança inabalável nas minhas afirmações e negações. Você nos paga para facilitarmos seu esforço de decidir como agir, em especial, perante questões complexas, ambíguas.

Ou ao contrário, seria mais vantajoso que ela se colocasse como uma revista que sempre abre uma discussão – que sempre traz diferentes pontos de vista, diferentes visões de mundo, deixando para o leitor o trabalho de julgar em quem ele quer acreditar? Ou mesmo seria de seu interesse explicitar a controvérsia “técnica” que outros experts tem com os “peritos” que ela seleciona para suas páginas?

Os estádios da Copa ficaram prontos a tempo… mas a Veja não fez um artigo para reclamar dos matemáticos que fizeram os cálculos errados (ou fez?)
O defensor da postura inabalável (ou “steadfast”, em inglês) não se abala. O que acontece é que ele considera um prejuízo – ou um risco – considerar o entendimento do mundo dos outros.  Ainda que ele próprio considere que seu debatedor tenha conhecimento suficiente de causa, no entendimento do debatedor inabalável, é mais favorável (interessa mais) assumir a “não conciliação” nem cooperar por um entendimento mútuo – é mais “barato”, menos custoso, assumir que a discordância vem da evidência de que o outro “só pode estar errado”.

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E dessa forma, o diálogo com outros leitores da Veja poderá oferecer muito pouco para um leitor crítico de Veja – ou seja, que não parte SEMPRE do princípio que deve concordar com TUDO o que está escrito ali.

A postura steadfast é nefasta para a comunidade, ainda que pareça ser favorável, sob certos pontos de vista, para aquele que mantém a crença inabalável e crê que suas crenças não carecem de revisão.

Não seria mais interessante para a sociedade brasileira manter uma ampla discussão sobre um tema tão crucial?
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As “questões críticas a serem feitas em busca da saída do Labirinto do Desacordo” deveriam ser:

– Leio esta revista para reforçar ou alterar minhas crenças? Estou disposto a alterá-las se julgar necessário, ou seja, se o texto puder me convencer a rever minha crença em determinada proposição de verdade?

– Como posso ter segurança caso decida manter minha crença, ainda que a revista proponha que eu a suspenda?

– Devo mudar minha forma de agir, após tomar conhecimento sobre as proposições de verdade feitas pela revista Veja/ Editora Abril?

– Quais os objetivos desse texto em específico?

– Quais os meios que esta revista dispõe para atingir seus objetivos?

Devo mudar minha crença? Devo mudar minhas decisões?
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Caso essas perguntas tenham lhe soado triviais, naturais, obvias… parabéns. Você tem o hábito de se propor as questões fundamentais do desacordo, consciente ou inconscientemente:

– Devo ou não alterar minhas crenças diante da proposição (V) da Veja?
PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO

– Devo ou não mudar minhas decisões, minha forma de agir, após deliberar sobre a veracidade das proposições da Veja?
PROBLEMA ÉTICO

– Devo ou não levar em conta os meus objetivos e os objetivos das pessoas com quem estou dialogando para rever crenças e decisões?
PROBLEMA TELEOLÓGICO

Creia nisso, faça isso
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A partir daqui, apresentaremos algumas considerações de Daniel Baiardi, colaborador do Labirinto do Desacordo, sobre outras estratégias possíveis para o leitor crítico – de seu artigo “Conciliacionismo e Cooperação: Uma Estratégia Híbrida para o Desacordo”

Quando pensamos nas posturas frente ao desacordo, o cenário ideal seria aquele onde agentes de posse de crenças verdadeiras mantêm sua posição e aqueles de posse de crenças falsas são convencidos.

Contudo, como não sabemos quem está de posse da verdade, é imperativo uma postura ética diante do desacordo, ou seja, uma norma geral a respeito de como uma pessoa crítica deve agir em casos de desacordo.

É necessária uma alternativa além de manter obsessivamente a crença ou perder confiabilidade nela todas as vezes que se deparar com um desacordo.

Baiardi propõe uma visão “contextualista” (ou uma forma de “perspectivismo”) e uma “orientação de cooperação epistêmica”, ou seja:

Que o “par de pessoas” em desacordo considere o contexto mais amplo do desacordo – a dimensão social do conhecimento – e que evite uma postura inflexível, identificando pares de debatedores abertos para uma cooperação* na investigação da qualidade da crença, e “jogando duro” com pares que estejam inabaláveis em suas posições.

* Cooperação no sentido estrito, como estudado por Robert Axelrod em seu “A Evolução da Cooperação“.

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Em outras palavras, “conciliar com conciliadores” e manter a crença perante agentes do tipo“steadfast” – como a Veja.

Alguém que toma para si o método científico, em certas circunstâncias deve conciliar e em outras manter sua crença.

Este tipo de comportamento misto é bem exemplificado por estratégias de interação em “rounds sucessivos”, ou seja, quando sabemos que as rodadas de acordo/desacordo irão acontecer muitas vezes ao longo do tempo, usadas em jogos evolucionários, como encontramos na teoria da cooperação de Robert Axelrod.

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O que devemos retirar por corolário é que conciliar visões com verdadeiros pares epistêmicos (com conhecimento suificientemente equilibrado e objetivos em comum) é de vital importância para os propósitos da comunidade.

Ou viveremos como eremitas ou como párias que, ou se satisfazem com suas visões parciais do todo, ou ainda, com menos caridade, pessoas que não estão dispostas nem a compartilhar suas verdades nem aprender com seus erros.

Com base no que foi dito, a estratégia híbrida prescreve:

– Sempre conciliar com aqueles que partilham nossos objetivos e meios. Dessa forma, sempre conciliar com conciliacionistas, salvo com inferiores epistêmicos ou frente a disparates.

– Se esforçar em conciliar com aqueles com os quais compartilhamos ao menos os objetivos, mas não os meios.

– Nunca conciliar com um steadfast, a não ser que ele seja um superior epistêmico (notoriamente tenha um conhecimento superior sobre a matéria) ou tenha um histórico de conciliação em outras ocasiões.

Neste âmbito, as pessoas devem ser flexíveis: a ideia é assumir o esforço de se colocar na perspectiva do outro, exercer uma empatia. (Vide “Histórias Abertas: Uma Entrevista Com Kiara Terra”). Afinal, se procedemos racionalmente ao fixar nossas crenças, não seria razoável dar crédito a outros agentes que não usam dos mesmos critérios para fixar crenças.

Mas isso não é o bastante para uma defesa do conciliacionismo combinado com a cooperação.

O fator decisivo para tornar o conciliacionismo uma posição mais racional depende da aceitação de uma cláusula especial à qual muitos céticos poderiam se opor, a Tese da Difusão do Acerto (TDA), a qual entende que o acerto é mais difundido que o erro em comunidades especializadas.

(TDA) Dada uma crença V, pertencente a um campo do conhecimento F, estudado por uma comunidade C, geralmente, em C, o acerto sobre V é mais difundido que o erro.

Considerando o acerto como mais difundido que o erro, não é difícil perceber que os conciliacionistas se aproximarão cada vez mais da verdade, sem, contudo, aproximar- se demais da certeza sobre crenças controversas.

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Por fim, esta cooperação deve evitar alguns desvios de rumo bastante comuns:

O problema do “Puro Conciliacionista”

Alguém que tente “conciliar-se a priori”, ou “conciliar-se excessivamente”, pode estar assumindo que a cooperação signifique “aceitar ou tolerar que o outro pense diferente“, ou mesmo considerando “minimizar sua crença em respeito ao outro“.

Um conciliacionista pode ser alguém que se preocupa com o risco de que o desacordo vire “discórdia, cizânia”, uma vez que a multipliciade de pontos de vista pode impedir um consenso.

– Devo conciliar-me “a priori”, ou seja, buscar um meio termo independente de quaisquer soluções de validação da “verdade”, respeitando sempre a percepção do outro, ainda que equivocada?

– Devo ponderar: qual o melhor equilíbrio entre acordo e desacordo a respeito das        crenças propostas no artigo da Veja?

As duas perguntas acima podem levar a uma “conciliação” improdutiva, ou equivocada; podem ser um sintoma de um erro lógico, conhecido também como “a falácia do meio termo”.


O problema do “Relativista

Um relativista acredita que um mesmo objeto pode ser duas coisas diferentes ao mesmo tempo.

– Devo relativizar a proposição de verdade? Aliás, existe uma “verdade” – a não ser aquela definida pelo objetivo específico de cada debatedor?

Sem dúvida que a diversidade de perspectivas deve ser preservada, mas devemos considerar adimensão social do desacordo. Isso significa que a busca para uma solução “ótima” para o desacordo pode ter tanto um “interesse social”, quanto pode ser compartilhada por grupos sociais mais amplos do que o par de debatedores em questão.

O problema do “Cético

Uma outra alternativa seria tomar a posição de um cético frente a questões controversas, onde evidências são escassas – simplesmente propor a suspensão do julgamento.

– Diante do impasse, prefir assumir que não existe uma solução possível – só sei que não sei se a proposição de verdade é válida.

Mais uma vez, esta posição entra em choque com a dimensão social do desacordo na contemporaneidade, quando fica clara nossa dependência de nossos coletivos. O empreendimento científico, exemplo maior da aplicacão da racionalidade, só é possível como empreendimento social – e não pode “se dar ao luxo” de suspender permanentemente o acordo/desacordo.

Como agentes auto interessados que somos, muitas vezes nossos objetivos (o ceticismo, a suspensão do julgamento, no caso) podem entrar em conflito com aqueles da comunidade.

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DISCLAIMER:

Devemos declarar que a página do Labirinto do Desacordo não possui anunciantes e não pretende tê-los. Qual o objetivo desta página, então?

Guarde a pergunta: EM BREVE A RESPONDEREMOS.

Mas faça a mesma para a revista Veja: qual o objetivo desta publicação?

Ou melhor – quais os objetivos destas páginas – esta gratuita, e a outra paga (ainda que repleta de propaganda)?

Qual o objetivo da revista Veja?

Quais os objetivos de cada artigo publicado?

Espero que após ter lido este artigo, possa ter compreendido que a pergunta não é meramente retórica.

texto da página “O Labirinto do Desacordo”.

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