Amanhã recomeço a evitar o sal e a comer mais sol II

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E na coluna “A César o que é de Cícero” o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista conversa com o seu pai, que já partiu fisicamente deste mundo no qual nem sempre filhos e pais falam o idioma da compreensão mútua.

Aqui a segunda e última parte da crônica. Abaixo desta, segue a primeira parte.




Para Cícero Romeiro Batista, in memorian
“Se cuidavas de todos por que não permitiste que cuidássemos de ti com empenho semelhante? Parecias te vexar diante de tal possibilidade, de receber ajuda. Mas não foi para isso que fomos educados pelo exemplo? Para ajudar quem quer fosse? Lembro-me: vá embora, que há de chover, foi o que a mim disseste em uma visita, em uma tarde de sábado. Eu deveria ter ficado mais tempo sem me importar com diabos de chuva, com enchentes com as mil léguas submarinas.

Que medos tinhas em segredo? Os meus são tantos, que alguns devem casar com os teus, é certo. De toda maneira, não podias vacilar diante do teu papel, sendo responsável por tanta gente. Não era fortaleza, em teu temperamento não havia espaço para brutalidades. É que não podias jamais colapsar, se é que isso existe. Não podias enlouquecer, recebeste não se sabe de quem a pena de permaneceres lúcido até o final.

Só se ama quando se perde? Não é bem isso o que gostaria de dizer-te. É que a perda irrecuperável parece nos dar o senso de perspectiva que nos faltava, o ângulo certo com o qual se pode medir a trajetória de uma vida.

Minha inteligência me desorienta, vivo a brincar com as palavras, escondendo a cabeça dentro de um buraco como avestruz de desenho animado. Enrolo-me. Sonho com os números da loteria, mas depois volto à razão e desisto de jogar dinheiro fora.


Quanto a ti, que exemplo de parcimônia com o uso do dinheiro. Não te faltou nada, foste comedido. Poupaste, colocaste todas as contas em dia. Foste um exemplo de providência. Se há algo que me faz me sentir pequeno diante de ti, é esta minha incapacidade para as finanças.

Tive que aprender o mínimo de tal arte a duras penas. Os miúdos me ensinaram. Ou melhor, ensinou-me a minha preocupação com o futuro deles. Como eu mesmo não quero nada para mim, a não ser o mínimo para se viver com dignidade, que eles sejam mais felizes que eu.


A escola tem que ser para eles uma atividade útil. O lugar onde se possa recolher reconhecimento e conhecimento.


Se eu pudesse, eu os levaria pelas mãos a conhecer alguns episódios da minha infância. Como conhecer a estrada que desbravei em um dia de chuva, acreditando que conseguiria chegar ao final dela a pé em menos de trinta minutos. A chuva apertou, eu desisti. Mas como a estrada ainda existe, eu os levaria até lá para que eles mesmos julgassem as minhas sandices de menino. Assim eu os prepararia para que, se fosse o caso, trocássemos de lugar. Para que eles fossem meu pai, por assim dizer. Já lhes adiantaria que haveriam de ter algum trabalho comigo se não me dessem a atenção que julgo merecer. Acusaria-os de ingratidão se assim me fosse permitido.

Às brasas toda a melancolia. É a doença que nos atiça os traços de personalidade. Dêem-me vida, dêem-me vida. Pé ante pé, é preciso voltar a caminhar.

Amanhã recomeço a evitar o sal e a comer mais sol.

E voltar a desfrutar sem melindres da praia. Um velho calção de banho, diga-se antiquado. E quem se importa em seguir estritamente os rumos da moda não está com nada. foste à praia com a regularidade de quem se sabia ter direito sempre que possível ao sol. Por que eu não posso seguir teus passos em tal quesito?

Para os dias frios e tristes, a magia do cinema. Até filmes ruins servem para passar o tempo. E depois chá com biscoitos e água mineral com gás. Custam uma fortuna nas casas de chá, mas não é de dinheiro que se trata, mas de arejamento. É de uma alegria, é de espantar as rabugices da vida.

Aos poucos aceitei a minha condição na terra e segui a jornada. Hoje já me cabe imaginar os filhos dos miúdos limpando com as costas das mãos os meus beijos efusivos de avô. Fantasio. Penso que irei lhes contar histórias fantasiosas ao pé do ouvido. A realidade, mesmo quando boa ou conveniente, a mim não basta.

E por ser fantasioso, eu haveria de honrar teu nome com o devido cuidado de ser sempre que possível ágil como um prestidigitador.”

Parte primeira do texto de Cícero César.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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